É
poesia? não é poesia?
(por Wilson Martins)
A poesia chamada “marginal” é poesia
para quem a aceita como poesia, mas, por sua própria definição,
situa-se à margem e, por isso mesmo, fora da literatura. A expressão
refere-se, antes de mais nada, ao “uso da linguagem coloquial”,
enquanto a poesia propriamente dita a recusa tanto quanto as formas
vulgares (J.R. de Almeida Pinto. “Poesia de Brasília: duas tendências”.
Brasília: Thesaurus, 2002). Ora, a poesia é, por definição ou
convenção, o ponto mais alto da criação literária, havendo idiomas,
como o alemão, em que “literatura” e “poesia” são palavras sinônimas
e intercambiáveis.
O problema das concepções poéticas e respectivas teorias nada
tem de simples: “As relações da crítica literária com a poesia
ou, de uma forma geral, com a teoria estética, são múltiplas e
complexas. A principal preocupação do crítico é a avaliação e
a análise da obra (...) mas toda avaliação implica padrões de
julgamento cujas raízes estão em alguma espécie de estética ou
de poética, relações que vão da adesão deliberada a um sistema
à rejeição não menos deliberada de todos eles” (G.N.G. Orsini.
“Conceptions of poetics”, em Alex Preminger, ed. “Encyclopedia
of poetry and poetics”).
Estamos, pois, no terreno da erudição e da alta cultura, balizado
pelo que o pensamento literário já produziu de mais sublime. A
poesia é “uma forma de conhecimento que culmina em uma intuição
pura do sentimento, transcendendo os elementos intelectivos. (...)
Não creio que seja preciso fazer opção entre o emocional e o racional
para se explicar a função cognitiva da poesia, a qual recorre
à intuição imagética exatamente para ascender àqueles planos a
que a razão não tem acesso mediante seus processos hermenêuticos.
(...) na poesia o que acaba prevalecendo é o elemento afetivo
(...) toda experiência culmina sempre no que denomino Imagem Absoluta
, por acabar encapsulando, por assim dizer, o racional em um cenário
de imagem” (Miguel Reale. “Variações 2”. Rio: Academia Brasileira
de Letras, 2003).
Desnecessário dizer que as “duas vertentes” identificadas por
J. R. de Almeida Pinto na poesia de Brasília não são exclusivamente
brasilienses, mas não é o que importa no momento: “A poesia marginal
tende, claramente, para o ânimo de conhecimento e/ou denúncia
(...) enquanto a poesia culta, mesmo quando concebida como método
de aprofundamento ontólogico (...) ou associada à necessidade
de instauração de um mundo novo (...) denota, em regra, propensão
ao ânimo ‘epidêuctico’. A poesia culta aspira à dicção ‘pura’;
no caso da poesia marginal — se não se pode falar de estilo mesclado,
definido como ‘mistura de tom sério de visão problematizante,
com temas e expressões vulgares’, pois o tom da poesia marginal
é, por excelência, anticonspícuo —, pode-se falar, sem dúvida,
de uma dicção não-pura”.
A “poesia marginal” é de natureza irônica e prosaica, produto
da inteligência crítica e raciocinante, por oposição à poesia
culta, fundada na emoção e na sensibilidade, pertencendo ao mundo
metafórico da expressão, enquanto a marginal está presa à linguagem
referencial e dela depende. Não há poesia nessa “poesia”, mas
frases de espírito, epigramas, trocadilhos, jogos de palavras,
alusões ao efêmero e ao pitoresco, filosofia do cotidiano, tudo,
claro está, intelectualmente circunscrito ao idioma prosaico.
Na observação de Almeida Pinto, o coloquialismo pode levar (e
freqüentemente leva...) ao extremo mau gosto e à provocação infantil,
ao humorismo obsceno e às alusões coprológicas.
Claro, há muita “prosa” na poesia culta, o contingente de prosaico
concorrendo para a popularidade de poetas que com isso alcançam
a aceitação do leitor comum capaz de “compreendê-la”. Assim, por
exemplo, o pensamento descritivo e as frases prosaicas encontram-se
com abundância na obra de João Cabral, provenientes de um esforço
da inteligência (“como quem constrói uma casa”), não da inspiração
emotiva que ele expressamente rejeitava. O certo é que boa parte
da poesia culta é pensada em prosa e escrita em versos, sendo
perceptível a tara raciocinante que carrega. Segundo Valéry, os
deuses, sempre caprichosos, dão aos poetas apenas o primeiro verso,
cabendo-lhes encontrar ou inventar os demais. Ora, o racionalista
Valéry tampouco acreditava na inspiração, escrevendo os poemas
“como quem constrói uma casa”. É, por isso, um mestre a evitar,
embora seja, por outro lado, o oficiante supremo da poesia culta
e superculta.
Almeida Pinto seleciona Nicolas Behr, Eudoro Augusto, Francisco
Alvim e Turiba como representantes paradigmáticos da poesia marginal
em Brasília, autores que se lêem pela carga humorística, não pela
qualidade, nem mesmo pelo interesse literário. Assim: “estou começando
a perder / o medo que tenho das pessoas // já pego na mão / da
minha namorada” (Nicolas Behr). Ou então: “o fundo / a forma /
o meio pelo qual / o instrumento, o material / os níveis / (todos
sabem) / é pura curtição” (Eudoro). Outro: “Luís me amava muito
/ muito mesmo / apesar de suas amantes / foi por isso que nunca
me separei” (Chico).
A poesia marginal origina-se no efêmero e morre com ele, valendo-se
da falsa agudeza e da engenhosidade primária, do simplismo de
espírito e da intenção provocadora, tentando desmistificar os
cânones aceitos. Quanto à poesia culta de Brasília, representada
por Anderson Braga Horta, Cassiano Nunes, Marly de Oliveira e
Domingos Carvalho da Silva, “filia-se ao verso que, herdeiro das
conquistas da linguagem poética da ‘fase dinâmica’ do Modernismo
(...) supera os aspectos contingentes dessa linguagem na década
de 1930, incorpora as preocupações formais da década de 1940,
mas não se deixa seduzir, senão esparsamente, pelo experimentalismo
das vanguardas da década seguinte”.
O fato é que a “presença” de Brasília em nossa vida literária
ainda não corresponde à sua “presença” na vida política, problema
de sociologia da cultura que aguarda um estudo de sugestivas implicações.
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