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O Apocalipse está aí???
(Por Mark Townsend e Paul Harris em Nova York)

Guerras e desastres causados por mudanças climáticas podem custar milhões de vidas em poucos anos
Revista CARTA CAPITAL (política, economia e cultura)
Ano X nº280 03 março 2004

Um relatório secreto, suprimido pelos chefes da Defesa norte-americana e obtido pelo Observer, adverte que grandes cidades européias ficarão submergidas pelos mares, enquanto a Grã-Bretanha terá um clima "siberiano" até 2020. Conflitos nucleares, grandes secas, fome e tumultos generalizados acontecerão ao redor do mundo.
O documento prevê que uma mudança abrupta no clima poderia levar o planeta à beira da anarquia, enquanto países desenvolveriam armas nucleares para defender e assegurar alimentos escassos, água e estoques de energia. A ameaça à estabilidade global é muito maior do que a do terrorismo, dizem os poucos os especialistas que conhecem seu conteúdo.
Rupturas e conflitos serão características endêmicas da vida", deduz a análise do Pentágono. "Mais uma vez, a guerra poderia definir a vida humana".
As conclusões poderiam ser humilhantes para o governo Bush, que negou repetidas vezes que as mudanças climáticas nem sequer existam. Especialistas dizem que o documento será uma leitura pertubadora para um presidente que insiste na defesa nacional como prioridade.
O relatório foi pedido por Andrew Marshall, influente conselheiro de Defesa do Pentágono que teve considerável influência sobre o pensamento militar norte-americano nas últimas três décadas. Ele foi o responsável por uma vasta análise que pretendia transformar as Forças Armadas norte-americanas sob o secretário de Defesa, Donald Rumsfeld.
A mudança climática "deveria ser elevada além do debate científico para uma preocupação de segurança nacional norte-americana", dizem os autores, Peter Schwartz, consultor da CIA e ex-chefe de planejamento do Grupo Royal Dutch/Shell, e por Doug Randall, da Global Business Network, com sede na Califórnia.
Um cenário de mudanças climáticas catastróficas e iminentes é "plausível e desafiaria a segurança nacional norte-americana de maneira que deveriam ser imediatamente consideradas", concluem os autores. Já no próximo ano, enchentes generalizadas causadas por uma elevação no nível dos mares poderiam ser calamitosas para milhões de pessoas.
Em 18 de fevereiro o governo Bush havia sido alvo de notícias críticas de uma respeitada organização de cientistas para os quais essa administração escolhe a dedo teses científicas para combinar com sua agenda e suprime os estudos de que não gosta. Jeremy Symons, ex-funcionário e crítico da Agência de Proteção Ambiental (EPA), afirmou que a supressão do relatório por quatro meses é outro exemplo de tentativa da Casa Branca esconder a ameaça da mudança climática.
Climatologistas mais experientes, no entanto, acreditam que as conclusões do relatório podem forçar Bush a aceitar a mudança do clima como um fenômeno real e presente. Também esperam que o relatório convença os Estados Unidos a assinar tratados globais para reduzir a taxa de mudança climática.
Um grupo de eminentes cientistas britânicos, recentemente, visitou a Casa Branca para externar seus temores sobre o aquecimento global, parte de uma estratégia para conseguir que os EUA tratem do assunto com seriedade. Fontes disseram ao Observer que funcionários pareciam extremamente melindrados ao ser confrontados com reclamações de que a posição oficial dos EUA parecia cada vez mais alheia à realidade.
Uma dessas fontes até afirmou que a Casa Branca tinha escrito para reclamar de alguns comentários atribuídos ao professor Sir David King, principal assessor científico de Tony Blair, depois que este classificou a posição de Bush como indefensável.
Entre os cientistas presentes na Casa Branca estava o professor John Schellnhuber, ex-conselheiro-chefe sobre meio ambiente do governo alemão e líder do principal grupo de cientistas climáticos do Reino Unido no Tyndall Centre for Climate Research. Ele disse que os temores internos do Pentágono poderiam ser decisivos para persuadir Bush a reconhecer a mudança climática.
Sir John Houghton, antigo diretor do Meteorological Office - e primeira figura eminente a comparar a mudança climática ao terrorismo -, disse: "Se o Pentágono emite esse tipo de mensagem, esse relatório é realmente muito importante".
Bob Watson, cientista-chefe do Banco Mundial e antigo presidente do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática, acrescentou que os avisos do Pentágono não podem ser mais ignorados.
"Bush pode ignorar o Pentágono? É difícil ignorar esse tipo de documento, que é profundamente vergonhoso. Afinal, a principal prioridade de Bush é a defesa nacional. O Pentágono não é um grupo liberal ou maluco, em geral é conservador. Se a mudança climática for uma ameaça à segurança nacional e à economia, ele tem de agir. Existem dois grupos que Bush tende a escutar: o lobby petroleiro e o Pentágono", afirmou Watson.
"De um lado do rio Potomac está um presidente que fala que o aquecimento global é uma fraude e do outro um Pentágono que se prepara para guerras climáticas. É assustador um presidente ignorar seu próprio governo nessa questão", disse Rob Gueterbock, da ONG Greenpeace.
O planeta já tem uma população maior do que pode sustentar, segundo Randall e Schwartz. Até 2020, faltas catastróficas de água e de energia vão se tornar cada vez mais difíceis de superar e causarão guerras ao redor do mundo. Os autores dizem que, 8.200 anos atrás, condições climáticas trouxeram destruição generalizada de safras, fomes, doenças e migrações em massa, que em breve poderão se repetir.
Randall disse ao Observer que potenciais ramificações de mudanças climáticas poderiam criar o caos global. "É uma coisa deprimente", garante. "É uma ameaça à segurança nacional que é única, porque não existe um inimigo para apontar nossas armas e não temos controle sobre a ameaça".
Randall acrescentou que já poderia ser tarde para previnir o desastre. "Não sabemos exatamente em que ponto estamos no processo. Poderia começar amanhã e não saberíamos antes de cinco anos", conta.
"Para algumas nações, as conseqüências da mudança climática são inacreditáveis. Parece óbvio que vale a pena cortar o uso de combustíveis fósseis".
Os cenários do relatório são tão dramáticos, segundo Watson, que eles podem ser vitais para as eleições norte-americanas. O candidato democrata líder nas pesquisas, John Kerry, reconhece que a mudança climática é um problema real. Cientistas desiludidos com a posição de Bush ameaçam assegurar que Kerry use o relatório do Pentágono em sua campanha.
O fato de que Marshall está por trás das descobertas pode ajudar Kerry. Marshall, de 82 anos, é uma lenda do Pentágono que lidera um pouco conhecido think tank dedicado a medir riscos à segurança nacional, chamado Escritório de Avaliação Geral. É chamado de Yoda por conhecedores do Pentágono que respeitam sua vasta experiência e lhe atribuem a iniciativa do departamento sobre a defesa antimísseis.
Symons, que deixou a EPA em protesto por interferências políticas, disse que a supressão do relatório era outra prova de tentativa da Casa Branca em esconder a questão da mudança climática. "É outro exemplo de como este governo deveria parar de enterrar a cabeça na areia ante esta questão".
De acordo com Symons a estreita ligação do governo Bush com poderosas companhias petrolíferas e de energia é vital para compreender por que a mudança climática é recebida com ceticismo no Salão Oval. "Essa administração está ignorando a evidência para acalmar um punhado de grandes companhias energéticas e petrolíferas", acrescentou.

Principais conclusões do Pentágono

As guerras futuras serão travadas por sobrevivência e não por religião, ideologia ou honra nacional.
Até 2007, chuvas torrenciais destruirão barreiras costeiras e tornarão grande parte da Holanda inabitável. Cidades como Haia serão abandonadas. Na Califórnia, barreiras no rio Sacramento serão rompidas, interrompendo o sistema de aquedutos que leva água do norte ao sul.
Mortes por guerra e fome chegarão aos milhões até a população do planeta ser reduzida a um nível sustentável.
Rebeliões e conflitos internos esfacelarão a Índia, a África do Sul e a Indonésia.
O acesso à água tornar-se-á um campo de batalha. O Nilo, o Danúbio e o Amazonas são mencionados como sendo de alto risco. Uma "redução significativa" na capacidade do planeta sustentar sua população atual ficará evidente nos próximos 20 anos.
Áreas ricas como os EUA e a Europa transformar-se-iam em "fortalezas virtuais" para impedir a chegada de migrantes provenientes de áreas inundadas pela elevação do nível do mar ou nas quais a agricultura tornou-se inviável. Ondas de barcos de imigrantes tornar-se-ão um problema significativo.
A proliferação de armas nucleares será inevitável. O Japão, a Coréia do Sul e a Alemanha desenvolverão capacidades nucleares, como também o Irã, o Egito e a Coréia do Norte. Israel, China, Índia e Paquistão inclinar-se-ão a usar suas armas nucleares.
Até 2010, nos EUA e na Europa, haverá um aumento de 33% nos dias com temperaturas acima de 32°. O clima começará a perturbar a economia à medida que chuvas, secas e ondas de calor tragam o caos à agricultura.
Mais de 400 milhões de pessoas em regiões subtropicais estarão em grave risco.
A Europa enfrentará enormes conflitos internos ao lidar com as massas de migrantes que desembarcarão em sua costa. Imigrantes da Escandinávia procurarão climas mais quentes ao sul, e o sul da Europa será invadido por refugiados de países duramente atingidos na África.
Megassecas afetarão os celeiros do mundo, incluindo o Meio-Oeste norte-americano, onde fortes ventos provocarão erosão do solo. A enorme população chinesa e sua demanda por alimentos fazê-la-ão particularmente vulnerável. Bangladesh tornar-se-á quase inabitável devido à elevação do nível do mar, que contaminará seus suprimentos de água doce.

SILÊNCIO DE ENSURDECER
A mídia custa a dar voz ao debate científico sobre o aquecimento global.
Por Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa

A repercussão internacional da matéria publicada pela revista britânica The Observer, no domingo 22 de fevereiro, embute uma omissão, como notou o escritor e jornalista australiano Tom Engelhardt em seu blog TomDispatch. Mas a forma como isso passou despercebido da maioria dos leitores e comentadores revela um problema quase tão grave quanto o do próprio aquecimento global.
A matéria não forneceu informações falsas, nem sequer exageradas. Mas dava a entender ser um furo mundial sobre um assunto, até então, mantido em segredo. Não foi bem assim: em 9 de fevereiro, na revista norte-americana Fortune, as mesmas informações, com mais detalhes técnicos, haviam sido publicadas sob o título de Climate Collapse, The Pentagon's Weather Nigthmare (Colapso Climático, o Pesadelo do Pentágono) e reproduzidas por mídias independentes. Você pode lê-la, por exemplo, no site ambientalista http://sierratimes.com/04/02/09/ar_weather.htm ou em http://www.independent-media.tv.
A falta de atenção para essa primeira matéria - a ponto de poder ter sido relançada duas semanas depois como furo de ressonância mundial - é, por si mesma, uma história muito reveladora sobre os pontos cegos, cada vez mais vastos da imprensa, principalmente, mas não só a norte-americana.
A maior precisão científica do artigo de David Stipp na Fortune tornava-o até mais assustador que o da Observer para quem o soubesse ler. Que o mundo está a caminho de virar um inferno em razão das mudanças climáticas, há muito tempo deixou de ser novidade, mas se "há poucos anos tais mudanças pareciam ser sinais de possíveis problemas para nossos filhos e netos, hoje anunciam um cataclismo que pode não esperar, convenientemente, que já tenhamos passado à história".
O estudo do Pentágono trabalhou com a possibilidade bem real de estarmos muito perto de um limiar crítico a partir do qual o clima pode virar repentinamente, em menos de uma década - "como uma canoa que se inclina pouco a pouco até emborcar de repente", escreveu Stipp.
A hipótese de trabalho - que deve ser entendida como um cenário plausível, não como uma projeção - é que essa virada aconteceria entre 2010 e 2020. Seria resultado do derretimento, já visível, das geleiras do Ártico. A água doce assim libertada, juntamente com a chuva intensificada pelo aquecimento global, vai se misturar à Corrente do Golfo e reduzir sua salinidade e densidade. A corrente, hoje submarina, seria retida na superfície e perderia seu ímpeto. Isso travaria a "correia transportadora" que conduz calor do Caribe para a Europa Ocidental e a torna muito mais habitável do que paragens igualmente setentrionais no Canadá, nos EUA e na Rússia (a latitude da Holanda e das Ilhas Britânicas é comparável à do Labrador canadense e da Kamchatka siberiana). Icebergs chegariam à costa de Portugal e a Europa congelaria. Em 2020, a temperatura média já teria caído 3 graus na maior parte do Hemisfério Norte. Os peixes abandonariam as atuais zonas pesqueiras em busca de águas mais aprazíveis. Na terra ou no mar, espécies incapazes de migrar se extinguiriam (9% a 58% de todas as espécies animais hoje existentes, segundo diferentes hipóteses).
Ao mesmo tempo, a temperatura do resto do mundo subiria e os padrões de chuvas e secas seriam alterados em várias partes do planeta, provocando estiagens e inundações, difundindo para outras partes doenças, hoje restritas aos trópicos, e agravando os conflitos internacionais, principal razão do interesse do Pentágono no tema. Suas especulações incluem a invasão da Rússia pelo Japão e países da Europa Oriental em busca de energia e recursos naturais, a reunificação das Coréias em uma nova potência capaz de somar a capacidade nuclear do Norte com a tecnológica do Sul e o rompimento pelos EUA do tratado que garante o fluxo do rio Colorado para o México, o que condenaria o país vizinho à desertificação, enquanto seus imigrantes famintos - juntamente com os do Caribe e da América do Sul - seriam impedidos de entrar na reforçada "fortaleza América (do Norte)".
Stipp sugere que 25% da população masculina dos países pobres pode morrer nesses conflitos. Contou também que a 20th Century Fox lançará em meados do ano um filme de catástrofe mais ou menos baseado nesse roteiro, chamado The Day After Tomorrow, no qual Dennis Quaid interpreta um cientista que salva o mundo (ou o Hemisfério Norte?) dessa idade do gelo, paradoxalmente, causada pelo aquecimento global.
Mas na Fortune o teor explosivo do assunto parece ter passado despercebido - como se Londres e Haia ficassem em outro planeta. Era "só" um "pior cenário" plausível que o Pentágono gentilmente "concordara em partilhar" com essa revista de economia e negócios e com os estrategistas das transnacionais norte-americanas.
Neste caso, parece que o meio matou a mensagem. O resto da mídia global não tomou conhecimento até a Observer relançar o assunto e politizá-lo como se deve.
O silêncio não foi rompido nem na quarta-feira 18, quando 60 cientistas (incluindo 12 premiados com o Nobel, 11 com a National Medal of Science, três com o prestigiado Prêmio Crafoord, dois ex-assessores presidenciais de ciência e vários reitores de universidades e presidentes de institutos de pesquisa) endossaram um relatório da organização liberal União dos Cientistas Engajados (Union of Concerned Scientists - UCS) que acusa Bush de enganar o público ao distorcer a ciência de acordo com sua vontade política, assim como fez com os relatórios da CIA sobre "armas de destruição em massa" do Iraque.
Trata-se de uma denúncia ampla, que se refere também ao ocultamento pela Casa Branca de evidências levantadas pela Agência de Proteção Ambiental (EPA) sobre poluição por mercúrio perto de termoelétricas e produção de bactérias resistentes a antibióticos pela criação de porcos, a troca de peritos científicos por representantes de empresas e igrejas em órgãos consultivos do governo federal, o apagamento e revisão de trechos de relatórios científicos oficiais, a proibição de divulgar que a ênfase na abstinência sexual por parte dos programas de "educação sexual" de Bush fez subir as estatísticas de gravidez adolescente e a ordem da Casa Branca ao Instituto Nacional do Câncer para este declarar, erradamente, que o aborto provoca câncer de mama.
Mas a questão mais vital, sem dúvida, era a supressão dos estudos sobre mudança climática e registros de temperatura do relatório anual da EPA divulgado em junho de 2003, também ordenada pela Casa Branca, que os substituiu por um estudo financiado pelo American Petroleum Institute.
Mesmo jornais que aplaudiram a UCS, como The New York Times, não citaram o estudo do Pentágono. Do outro lado da cerca, os mais imperialistas que o imperador - como o filósofo Olavo de Carvalho, no site Mídia Sem Máscara - tentaram desqualificar o posicionamento da organização sobre o aquecimento global com base em que "as referências a ela, acompanhadas dos respectivos links, são abundantes nos sites de organizações militantes comunistas, socialistas e pró-islâmicas", sem se dar conta de que fontes tão insuspeitas quanto a Fortune e o Pentágono haviam divulgado cenários muito mais alarmantes.
Ainda mais assustador é que mesmo depois de publicada a denúncia no Reino Unido e amplamente comentada na mídia européia, asiática, árabe, israelense, canadense e brasileira, os principais órgãos da mídia norte-americana continuaram alheios ao assunto. O New York Times dedicou várias matérias ao carnaval brasileiro, mas não se referiu ao relatório do Pentágono. Nem o Washington Post. Já o jornal conservador Washington Times - que na véspera havia ridicularizado o ex-candidato democrata Al Gore por tentar ressuscitar a discussão sobre o Protocolo de Kyoto e fazer dele um tema de campanha - ao menos acusou o golpe ao publicar um texto do filósofo Sterling Burnett, do instituto conservador National Center for Policy Analysis.
Burnett citou as divergências ainda numerosas entre climatologistas sobre os mecanismos exatos desencadeados pelo aquecimento global para classificar como "ficção científica" a tese da mudança climática, sem se perguntar por que o Pentágono se dá ao trabalho de analisar estratégias reais para enfrentar a tal "ficção".
É como os artigos patrocinados pela indústria do fumo que, até o início dos anos 90, alegavam que a falta de consenso dos oncologistas em relação aos mecanismos que levam ao câncer desqualificava como científica a tese de que o cigarro o causava, ainda que tivesse sido exaustivamente demonstrada por estatísticas.
Mais tarde o discurso dessa indústria embarcou na onda do individualismo neoliberal: passou a defender a responsabilidade e a liberdade pessoal de "optar" pelo risco de contrair um câncer. Mas no caso do aquecimento global, não há como optar individualmente, mesmo em tese, por correr ou não o risco de causar uma catástrofe planetária. Aliás, de acordo com o cenário do Pentágono, os países mais pobres e menos responsáveis pelas emissões de gás carbônico serão os primeiros e mais duramente atingidos pela vingança cega da natureza.
Houve quem, ao constatar a indiferença da sociedade civil ante o aquecimento global e seus efeitos mundialmente catastróficos a longo prazo, lembrasse de certa experiência científica cruel, mas verdadeira. Uma rã colocada em água quente salta imediatamente para fora, mas colocada em uma panela de água fria sobre um fogo que eleve sua temperatura pouco a pouco, a mesma rã nada tranqüilamente até morrer cozida.
Da mesma forma, a julgar pelas manchetes da imprensa norte-americana, sempre há mais gente disposta a tomar ou exigir providências em relação aos riscos de ser vitimado por um criminoso desconhecido, por um terrorista islâmico, pela queda de um avião, por abelhas africanas e até pelo choque de um asteróide com a Terra do que a fazer o mesmo contra as conseqüências muito mais vastas e certas, mas graduais, de seu próprio consumo irracional e supérfluo de petróleo.
Agora nos é dito, porém, que essas conseqüências talvez nem sejam tão graduais. Talvez se tornem drásticas, óbvias e praticamente irreversíveis já nesta década, ou na próxima. Mesmo assim, a mesma imprensa que dá capas e manchetes a debates sobre os riscos das gorduras hidrogenadas e dos implantes de silicone continua a tratar essa questão como um debate acadêmico complicado, abstrato e distante.
Talvez seja mais apropriado atribuir essa relutância a uma propensão a exagerar problemas que, aparentemente podem ser atribuídos a um "outro" a ser punido ou uma natureza a ser domesticada, para melhor ocultar aqueles causados pelo modo de viver, produzir e consumir da mesma sociedade que a própria mídia não se cansa de exaltar e promover.
Como noticiar - ou simplesmente pensar de dentro do american way of life - que as emanações dos jipes esportivos que encantam as famílias norte-americanas podem ser muito mais úteis aos Quatro Cavaleiros do Apocalipse que todos os terroristas da Al-Qaeda e do Hamas, somados? Que a desregulamentação e o livre mercado, em vez de levar ao melhor dos mundos possíveis, podem nos conduzir ao pior desastre da história?
Fez fortuna, em outros tempos, o lema "melhor morto do que vermelho (better dead than red)". Agora, parece que mais vale morrer sonhando o american dream do que abrir mão do exagerado padrão de consumo dos EUA: melhor morto do que menos rico.
Parece mais fácil ser racional na pobre República das Maldivas, tão pequena que seus cidadãos brincam que só é preciso encher os tanques de seus carros uma vez por ano. É formada por pequenos atóis de coral do Oceano Índico (aquele que abriga a capital tem 500 hectares), com pouco mais de um metro de altura. As mudanças climáticas já começaram a destruí-los e mesmo uma pequena elevação do nível do mar os inundaria rapidamente. Seu governo tem construído diques e quebra-mares para retardar a destruição dos atóis e, em 1997, começou a construir uma ilha artificial chamada Hulhumale, um pouco mais alta que seu território natural, para abrigar seu povo. É a primeira Arca de Noé do século XXI. Seres humanos não são rãs. Distinguem-se de outros animais, entre outras coisas, pela sua capacidade superior de interpretar indícios, relacionar causas e efeitos e antecipar os resultados de suas ações. Mas também por sua capacidade de mentir até para si mesmos - principalmente quando se trata de políticos e empresários (inclusive de mídia) para os quais o encobrimento da verdade favorece seus interesses mais óbvios e imediatos.
Isso não diz respeito apenas ao atual governo dos EUA, apesar de seu engajamento a favor dos interesses do setor petrolífero ter obviamente agravado a questão: já no tempo de Clinton os democratas hesitavam em defender abertamente o Protocolo de Kyoto e sua relutância aumentou ainda mais depois dos efusivos cumprimentos da National Association of Manufacturers (a CNI dos EUA) e da Câmara do Comércio a Bush por ter defendido o interesse nacional contra o tratado que limitaria o consumo de combustíveis dos países industrializados.
Restou nos EUA, porém, uma instância encarregada de pensar o impensável - as Forças Armadas. Como parece improvável que a Casa Branca decida privatizá-las, seus cientistas podem acabar como os únicos autorizados a discutir ecologia sem serem tachados de antiamericanos.
Mas não nos iludamos: ao tratar do assunto, o Pentágono lembra um certo figurante freqüentemente citado por Luis Fernando Verissimo. Sua participação na peça seria entrar em cena durante uma bacanal, jogar as mãos para o alto, escandalizado, e dizer: "Mas isto é Bizâncio!" O ator entrou em cena na hora certa e disse a fala corretamente. Só que fez isso esfregando as mãos.
Da mesma forma, é difícil não imaginar os generais a esfregar as mãos ao listar os novos riscos para a segurança nacional e prever a transformação dos EUA em vasta fortaleza protegida por um arsenal ampliado e modernizado que proteja seus recursos de serem consumidos por imigrantes famintos empilhados em precárias jangadas ou pilhados por nações desesperadas, armadas com bombas atômicas.
A conclusão do relatório do Pentágono, vale notar, é positiva: "Os EUA sobreviverão sem perdas catastróficas", ao contrário da maioria das demais nações do mundo. Se lhes importa mais estar em primeiro lugar do que viver em um mundo razoavelmente habitável, serão os demais que terão de jogar as mãos para o alto, se escandalizar e gritar "Mas isto é Bizâncio!" Sem esfregar as mãos.
FIM.

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