Em entrevista ao CORDEL CAMPINA Gustavo
Dourado conta sua relação com a Literatura de Cordel desde o sertão
da Bahia até as páginas da internet
Por Rodrigo Apolinário
Cordel
Campina - Gustavo Dourado, como foi o seu primeiro contato
com a Literatura de Cordel?
GD - O meu primeiro
contato com a Literatura de Cordel e os folhetos ocorreu em
minha primeira infância(por volta dos 3 anos), em Recife dos
Cardosos, sertão de Ibititá, Região de Irecê, na Chapada Diamantina,
lá pelos idos de 1963. Meu pai Ulisses Marques Dourado era
lavrador, feirante e dono de venda (comerciante). Tinha um
pequeno empório de compra e venda de secos e molhados e materiais
básicos de consumo do sertanejo: feijão, arroz, farinha, rapadura,
jabá,grãos, doces, querosene e manufaturados, fósforo, alguns
remédios e comes e bebes do cotidiano. Não faltava o fumo
de rolo e várias marcas de aguardentes, entre outros produtos
de consumo do homem do sertão. Foi lá nesse ambiente que travei
contato com a cantoria e com a poesia de cordel. Entre os
poetas regionais que me recordo estão Zé de Duquinha, cordelista
e repentista, irmão de Rota. Eles faziam dupla, eram reiseiros
e filhos de Zé Marcolo. Eles fizeram entre outros abcs, o
abc de Manuel Quirino, famoso valentão da Chapada Diamantina,
pertencente às hostes do Coronel Horácio de Matos. Além dos
citados, convém ressaltar a influência do meu irmão-poeta
Edenivaldo Alves Dourado(Dene) e do vaqueiro Válter Queiroz(conhecido
por Válter Baton), ambos eram cordelistas, gostavam de improvisar
e faziam aboios que me encantavam...Não posso esquecer de
vários outros nomes de lavradores, vaqueiros, tropeiros, viajantes,
aventureiros, trabalhadores rurais, muitos deles advindos
da Paraíba, de Pernambuco, do Ceará, de Alagoas, do Rio Grande
do Norte, do Piauí e de outros estados do Nordeste. Os baianos
também gostam de um cordel e com a mistura de outros nordestinos
a inspiração fluía à flor da pele. É preciso lembrar dos ciganos,
dos viajantes, dos aventureiros...
Cordel
Campina - Você é um grande propagador da Literatura de
Cordel via internet e produz seus cordéis, muitas vezes para
serem publicados via internet, como você analisa essa união
entre Cultura Popular e Novas Tecnologias?
GD - Antes da Internet
li/conheci diversos cordelistas e os divulgava em Brasília,
Taguatinga, Ceilândia, nas escolas, nas faculdades, nos centros
culturais, principalmente na UnB, no ICC(Minhocão), nos anfiteatros,
no restaurante universitário(bandejão), nos anfiteatros, salas
de aula, na biblioteca, nos cursos de Letras, Arquitetura,
Comunicação, nos centros acadêmicos e no Centro Olímpico(CO)/alojamento
estudantil, nos encontros, nas festas e quermesses. A união
entre cultura popular e as novas tecnologias é uma parceria
vital para dinamizar e divulgar a nossa literatura de cordel
e outras vertentes culturais-literárias. Antes da Internet
era comum se ouvir falar na morte do cordel em jornais, revistas,
cursos e seminários acadêmicos. Felizmente com a revolução
digital e com a linguagem virtual dos computadores, a literatura
de cordel ganhou dimensão jornalística e conquistou uma inesperada
autonomia e uma boa divulgação no universo virtual. Ganhou
gás e agora tem respiração própria. Hoje temos centenas de
cordelistas internautas no Nordeste, em São Paulo, no Rio,
em Brasília e por todos os estados do Brasil. Agora é preciso
selecionar o joio do trigo e primar pela qualidade textual.
É preciso garimpar para separar os cristais, o ouro e os diamantes
das pedras brutas. Como ocorre em tudo na vida e na literatura
tradicional. A Internet no quesito divulgação foi a salvação
da lavoura para os poetas sem espaço na mídia, nos jornais,
no rádio e na tv. A Internet deu um golpe certeiro na mídia
tradicional que está bêbada diante do fenômeno translingüístico
das novas linguagens virtuais/digitextuais. Só com o tempo
é que teremos condições de fazer avaliações mais acuradas
e analisar os seus detalhes e futuras projeções.
Cordel
Campina - Você já publicou cordéis fora da internet?
GD - Sim. Vários. O
mais conhecido é o Cordel do Corno, com arte de Zé Nobre.
Foram publicados milhares de exemplares. Teve vários lançamentos
e foi objeto de reporatagem na Rede Globo de Brasília e no
Correio Braziliense. Esse cordel rendeu várias histórias.
Muitos machões se revelaram autênticos cornos desvalidos e
desengonçados. O corno aqui referido, além do corno tradicional
avança no terreno do corno político, nos cornos politiqueiros
e suas politicagens. À época do Festival de Cinema de Brasília(1991),
o ministro da Fazenda leu e gostou do Cordel do Corno. Temos
muitos cornéfilos na política. Muitos lobos vestidos em pele
de cordeiro. Publiquei o Cordel da Criatividade pela Rede
Sarah, em trabalho conjunto com os alunos portadores de deficiência
locomotora. Desenvolvi cordéis com artistas plásticos/visuais/designers
como J. Borges, Pipol,Toninho de Souza, Arthur Campos, Olga
Kapatti, Delei, Zé Nobre, Edgar Santana, Márcia Macedo, Yon,
Elias e Gustavo Fontele Dourado e webdesigners como Yara Nazaré,
Inês Simões, Vânia Diniz, Efigênia Mallemont, Neli Neto, Elizabeth
Misciasci, Anna Paes, Safira Lilás, Lígia Tomarcchio, Rosa
Pena, Leila Míccolis, Celso Abrali, Garganta da Serpente,
entre tantos outros. O Cordel da Aid$(Cordel da Castração)
foi publicado pela Revista Víbora e recebeu elogios de Jorge
Amado(grande conhecedor da literatura de cordel).
Cordel Campina - Qual
o maior obstáculo em propagar a Literatura de Cordel via internet?
GD - Quase não se tem
obstáculo. A dificuldade maior ainda está no acesso. É preciso
democratizar o acesso das camadas populares à Internet e ao
computador. Se o Ministério da Cultura, as universidades e
as secretarias de cultura dos estados e dos municípios fizessem
alguma coisa para apoiar seria fundamental. Por enquanto não
tem nenhum tipo de incentivo que eu conheça. Só conversas
e promessas e muito blablablá e nhenhenhém. Não conheço nada
que seja feito para publicar, divulgar e promover os nossos
poetas cordelistas... Até quando o descaso?!
Cordel Campina - Como
você analisa algumas discussões acadêmicas que não vêem a
Literatura de Cordel como Literatura?
GD - Isso é masturbação
mental e devaneio de pseudos-intelectuais de miolo-mole e
de alguns pretensos acadêmicos sem preparo. Havia muito preconceito
das academias de letras tradicionais contra o cordel. Felizmente,
aos poucos isso tem sido eliminado. Graças principalmente
ao estudo de intelectuais de renome como Ariano Suassuna,
Luís da Câmara Cascudo, Manuel Diégues Júnior, Joseph Luyten,
M. Cavalcante Proença e de novos intelectuais como Eduardo
Diatahy de Menezes, Patrícia Araújo, Rodrigo Apolinário e
Emmanuelle Delabosse, Idelette Muzart, Ria Lemaire e Sylvie
Debs. A literatura de cordel, que é bem popular, bebeu em
fontes eruditas na Europa antiga e medieval, tem raízes nos
trovadores provençais, nos reis-trovadores, nos celtas e lusitanos,
nos poetas alemães da antigüidade e nas tradições orais dos
povos primevos das mais diversas civilizações do Oriente e
do Ocidente. É preciso haver uma maior divulgação da literatura
de cordel nas universidades e escolas brasileiras para se
acabar com o preconceito. É o mesmo estigma que havia contra
o samba, a capoeira, o choro, o xaxado, o maracatu...frescuras
das pseudo-elites intelectuais porta-voz da indústria cultural
e da alienação. A literatura de cordel é literatura das mais
importantes e destacadas porque é literatura do povo, tem
alma e tem raízes seculares.
Cordel Campina - Você
participa de outros projetos de propagação da Cultura Popular
além dos relacionados à internet?
GD - Sim. Faço divulgação
pessoal junto aos amigos e colegas da literatura/leitores.
Divulgo os cordelistas em feiras de livros, palestras, encontros,
debates, eventos e seminários. Envio relises e divulgação
para a Imprensa. Participo sempre que posso de projetos e
eventos que incentivam a cultura popular.
Cordel Campina - O Cordel
é um instrumento que deve ser utilizado pela educação?
GD - Sim e muito. O
Cordel é um instrumento educativo, pedagógico, criativo, transformador.
Paulo Freire, Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e outros educadores
conheciam o cordel e por ele foram influenciados em seus métodos
e no pensamento educativo-cultural. Deveria ser usado em sala
de aula, nas aulas de literatura brasileira, artes plásticas,
cinema, nos cursos de alfabetização, em seminários, encontros
e debates.
Cordel Campina - Como
é a atividade cordeliana em Brasília? Existem organizações
de cordelistas?
GD - Temos alguns cordelistas
alternativos e independentes, nos quais me relaciono e alguns
mais oficiais e ligados à Casa do Cantador.
Há pouca divulgação do que é feito em Brasília pela Imprensa
e pelo mercado editorial. A literatura de Brasília quase não
tem espaço na mídia, nas editoras e nas livrarias. A maioria
dos autores são independentes e pagam as gráficas para publicar
os seus livros. O mesmo acontece com os cordelistas. A maioria
(penso eu), hoje e cada vez mais migra para a Internet para
conseguir um espaço de divulgação. Os jornais estão cada vez
mais fechados e as tvs tornaram-se palcos das "midiocridades"
dos "big brothers" da vida.
Cordel Campina - Como
você observa o trabalho da Academia Brasileira de Literatura
de Cordel?
GD - O pouco que conheço
aprovo e valorizo. Eles deveriam abrir mais espaço para os
cordelistas mais jovens, inclusive para compor o quadro acadêmico.
Creio que com o tempo a Academia será aperfeiçoada e conquistará
mais espaços na mídia. É tudo uma questão de tempo e de empreendimento.
Cordel Campina - Como
você imagina o futuro do Cordel?
GD - O Cordel vai evoluir
como todas as outras modalidades literárias. Vai dar samba.
Será popularizado e vai interagir com outras linguagens. Principalmente
com a música, o cinema e as artes plásticas (xilogravura,
eletrogravura). Vai ganhar cada vez mais espaço na Internet
e será cada vez mais reconhecido no exterior e pelas universidades
estrangeiras. O Cordel tem linguagem universal. É poesia de
raiz e está na alma e no sangue do povo. O cordel é bíblico,
apocalíptico por natureza e vai transpor a barreira do tempo
e alcançar dimensões cósmicas. Conheça um pouco do cordel
que desenvolvo: www.gustavodourado.com.br/cordel.htm