A
vida e a Literatura de Rui Mourão
(por José Aloise Bahia)
A
literatura brasileira contemporânea, como uma literatura
múltipla e dinâmica, abrange uma série de
escritores expressivos. Muitos utilizam o espaço urbano
como leitmotiv para suas estórias. Entretanto,
poucos assumem o encantamento que determinados lugares provocam.
E, raros são aqueles que podem conviver de fato no seu
dia-a-dia, tendo como ambiente natural uma cidade centenária
e Patrimônio Histórico da Humanidade. É o
caso do mineiro Rui Mourão. E a cidade, Ouro Preto.
Mas, antes de chegar a Ouro Preto,
o escritor perambulou por um bocado de localidades. A primeira
delas, a cidade de Bambuí, Oeste de Minas Gerais, bem perto
da nascente do rio São Francisco (serra da Canastra), onde
nasceu em 18 de abril de 1929. Com 12 anos de idade, em 1941,
começa o ginasial em Formiga. No segundo semestre do mesmo
ano, muda-se com a família para Divinópolis. Em
1947, precisando trabalhar para continuar os estudos, vai tentar
o sustento em Belo Horizonte. Onde permanece até hoje.
Entretanto, ainda faltam algumas histórias nesta vereda
lúcida e criativa para ser contadas. Uma delas e a mais
recente: passar os dias em Ouro Preto e as noites em Belo Horizonte.
Uma experiência anfíbia. De segunda a sexta indo
de manhã e voltando à noite, ele viaja de ônibus
em direção a antiga Vila Rica, onde dirige por mais
de 30 anos um dos principais monumentos do país: o Museu
da Inconfidência.
Todas estas informações
e outras situações mais esclarecedoras sobre a vida
e a carreira premiada de ficcionista e ensaísta de Rui
Mourão, podem ser lidas no sexto volume da coleção
"Encontros com Escritores Mineiros" (Nov/2004),
editada pela Faculdade de Letras (FALE) da UFMG (www.fale.ufmg.br).
O livro foi organizado pela professora Haydée Ribeiro Couto,
que ressalta o valor do escritor: "Rui Mourão é
um autor importante não só pelo seu papel de romancista
e ensaísta, mas como um escritor voltado para a preservação
da memória de Minas e do Brasil". Vai além,
ao destacar a atuação no Museu da Inconfidência,
"As atividades de Rui Mourão são confluentes
e o colocam no cenário nacional e internacional".
Realmente, como veremos no transcorrer da nossa cronologia, Rui
Mourão exerceu diferentes atividades, tendo sido fundador
da revista Tendência (1957), junto com Affonso Ávila
e Fábio Lucas, foi editor do Suplemento Literário
do Minas Gerais e, desde 1974 assumiu a diretoria do Museu da
Inconfidência em Ouro Preto. Mais os prêmios literários
e medalhas recebidas reforçam a sua importância no
cenário cultural e literário nacional. A coleção
"Encontros com Escritores Mineiros", publicação
do "Projeto Integrado de Pesquisa e Acervo de Escritores
Mineiros da FALE" tem como objetivo sistematizar, através
do depoimento de seus mais significativos representantes, o perfil
de certa parcela da produção literária brasileira.
Cada volume contém o relato da vida e da experiência
intelectual dos autores, o comentário crítico das
obras publicadas, além de rico material iconográfico.
Pela ordem a coleção já lançou: Affonso
Ávila, Autran Dourado, Abgard Renault, Darcy Ribeiro, Laís
Corrêa de Araújo e agora Rui Mourão.
O Exílio nos Estados
Unidos - Continuemos a nossa biografia. Em 1949, Rui
Mourão ingressa na Faculdade de Direito da UFMG.
Estudioso e notadamente influenciado pelos escritores que mais
lhe despertavam a atenção, como Franz Kafka, William
Faulkner, Ernest Hemingway, Machado de Assis, Mário de
Andrade, Graciliano Ramos e o também estreante, o colega
Murilo Rubião, publica no ano seguinte, em A Manhã,
Rio de Janeiro, na coluna da escritora Dinah Silveira de Queiroz,
o primeiro texto de crítica literária, sobre Sagarana
de Guimarães Rosa. Convidado por Fábio Lucas, colega
da Faculdade de Direito, passa a integrar um grupo de jovens escritores,
que lançariam a revista Vocação. A partir
de artigos e ensaios publicados em Vocação, no Suplemento
Literário do Diário de Minas, no suplemento Letras
e Artes, de A Manhã, no suplemento do Estado de São
Paulo, o seu trabalho começa a ser conhecido. Forma-se
em direito em 1953. Dois anos depois, ganha o seu primeiro prêmio
literário (Cidade de Belo Horizonte) com a novela As Raízes.
Em 1956, publica As Raízes, seu livro de estréia.
Sobre o livro Affonso Ávila
observa: "O que a primeira vista se sobressai em As Raízes
é o seu equilíbrio estrutural, é a contenção
nos limites da novela de uma experiência de vida bastante
complexa e que se desdobra em mais de uma dimensão. (...)
A novela se divide em duas partes, a primeira abrangendo a fase
de desajustamento social dos personagens e a sua revolta contra
a ordem ética, a segunda o período de dissolução
moral que então sobrevém. A primeira parte se desenvolve
em planos simultâneos e é nela que Rui Mourão
exibe todos os seus recursos técnicos. (...) A linguagem
do novelista acompanha o raciocínio do personagem, tipo
obsessivo que remorde cada pensamento e se mantém em estado
de permanente delírio. (...) Na segunda parte, Rui Mourão
imprime maior objetividade à narrativa, acelera-se o ritmo
de ação do personagem, o elemento estático
da novela - a análise psicológica - cede terreno
ao elemento dinâmico - a história.Com essa alteração
de processo, a fabulação torna-se mais viva, há
maior liberdade de movimento para o próprio ficcionista.
Ele passa também a valorizar o descritivo, detém-se
mais na observação de costumes. No capítulo
oitavo da parte final reside o momento mais alto da novela, ali
não seria exagero elogiar-se o vigor com que se consegue
estabelecer o clima de "suspense". Igualmente vigorosas
são as cenas desenroladas no distrito policial e nos "bas-fond"
belo-horizontino." (Correio da Manhã, Rio de Janeiro,
26 jan. 1957)
Neste ano de 1957, junto com o próprio
Affonso Ávila e Fábio Lucas, companheiros de Vocação,
fundam uma nova revista: Tendência. Em 1960, assume a direção
da revista. Em 1961, já casado com a sra. Elza Sampaio
do Couto, é demitido do jornal Folha de Minas, no governo
de José Magalhães Pinto (UDN), oposição
ao PSD, que assumiu o poder no Estado de Minas Gerais. Em 1962,
ingressa no Correio de Minas, jornal recém-fundado. Outra
mudança: também se transfere para Brasília,
onde na condição de Auxiliar de Ensino, passa a
lecionar Literatura Brasileira na Universidade de Brasília
(UnB), criada por Darcy Ribeiro. Em 1963, torna-se Mestre em Literatura
Brasileira, apresentando dissertação sobre Graciliano
Ramos. No ano do Golpe Militar, ocupa interinamente o cargo de
Coordenador do Instituto Central de Letras da UnB, em substituição
ao romancista Cyro dos Anjos. No ano de 1965, junto com 270 professores,
demite-se da UnB, em repúdio às arbitrariedades
praticadas pela ditadura militar. Não lhe resta outro caminho
a não ser o exílio. Como no começo da nossa
narrativa, perambula novamente por outras cidades. Em 1966, desloca-se
para os Estados Unidos, onde vai lecionar na Tulane University,
em New Orleans, Louisiana, na condição de Professor
Visitante. Nos anos seguintes leciona na University of Houston,
Texas, e ministra curso de verão na Stanford University,
Palo Alto, Califórnia. Retorna ao Brasil em 1969, um ano
importante na sua carreira de escritor, ensaísta e editor.
O Suplemento Literário
do Minas Gerais - De volta ao Brasil, reassume o cargo
de Técnico de Administração do Estado de
Minas Gerais, do qual se achava licenciado. É colocado
à disposição da Imprensa Oficial, onde vai
integrar a Comissão de Redação do Suplemento
Literário do jornal Minas Gerais, caderno literário
e artístico criado três anos antes, no dia três
de setembro de 1966 pelo editor-fundador, o amigo e escritor mineiro
Murilo Rubião, um dos introdutores do Realismo Mágico
no Brasil. Neste posto será encarregado da organização
dos números especiais da publicação. O destino
de Rui Mourão muda completamente quando é nomeado
editor do Suplemento Literário do Minas Gerais, em substituição
a Murilo Rubião, denunciado como subversivo. Entretanto,
é demitido do cargo, dois meses após a posse, por
ordem do comandante da 11a. Região de Infantaria, sediada
em Belo Horizonte, general Gentil Marcondes Filho. Outro fato
marcante em 1969 é a publicação da primeira
edição de Estruturas: ensaio sobre o romance de
Graciliano. Após o lançamento, a obra foi responsável
por uma mudança de rumos na crítica de Graciliano
Ramos, tornando-se referência básica, pois "Até
então se fazia análise sociológica e biográfica
do autor. A partir da análise estilística dos livros,
abriram-se novas perspectivas para o estudo de Graciliano",
justifica Rui Mourão.
Em 1970, tem o primeiro contato
com a antiga Vila Rica. Procurando abrigo na administração
indireta para escapar à perseguição da ditadura,
a qual consideravam-no subversivo, apenas por não concordar
com as práticas despóticas do governo militar, é
admitido como diretor executivo da Fundação de Arte
de Ouro Preto, a convite de Murilo Rubião, que presidia
o orgão. No ano seguinte, ganha novamente o Prêmio
Cidade de Belo Horizonte com o romance Curral dos Crucificados.
"Uma grande metáfora", nas palavras de Affonso
Ávila: "Belo Horizonte-Curral-del-Rey-Cural dos Crucificados".
Um livro político. Um retrato real, singular e crítico.
Uma imagem atualizada da grande contradição estrutural
brasileira: o êxodo dos moradores do campo para os grandes
centros urbanos do país, em busca de melhores condições
de vida.
Eis o comentário de Fritz
Teixeira de Salles sobre a prosa de Curral dos Crucificados: "(...)
Mural ou sinfonia de signos polivalentes e de imagens vivas construídas
para expressar (revelando) o burburinho caótico, amplo
e tumultuado da cidade-coração do mundo contemporâneo,
neste livro podemos ver quais as conseqüências e as
renovações profundas que a colocação
do texto como foco da estrutura poderá acarretar e já
acarretou. Em o Curral dos Crucificados tudo se transforma incessantemente.
O texto atinge a obra e a sua estrutura; esta estremece no tumulto
da rua que vai e vem na sua vibração contemporânea,
atual e transformadora, onde tudo o que é - já era,
ou foi porque será. O romance brasileiro perdeu então
o seu caráter de corte estático, ou sincronia sem
diacronia - de uma paisagem imobilizada no lago tranqüila
de um universo que não se move e não responde."
(Suplemento Literário do Minas Gerais, 27 nov. 1971)
Contradições e ironia
do sistema, aliás, grata satisfação: em 1972,
é condecorado com a Medalha do Sesquicentenário
da Independência pelo governo militar. No ano de 1973 publica
Cidade Calabouço. Uma obra literária simbólica
e fragmentada dentro de uma cidade sombria. Um ritual úmido
e subterrâneo. Uma execução, em última
análise, carnavalesca de um casal de retirantes nordestinos,
cruel, lenta e gradativa. Considerado um dos melhores livros do
ano pela crítica. "Um romance dionisíaco",
segundo Fábio Lucas (Correio do Povo, Porto Alegre, 2 de
abr. 1974). Ou, "Uma narrativa, onde o povo é a personagem
coletiva que, onipresente, ofusca, oblitera, mas, sobretudo engloba
e assimila todas as demais. A grandiosidade dessa personagem incomum,
aliada à condensação de situações
de clímax, confere à narrativa uma dimensão
de epopéia", na opinião de Astrid Cabral (Revista
José, Rio de Janeiro, ago. 1976). Bella Josef também
destaca as qualidades da ficção: "Uma narrativa
de predominância parodística, como esta, diminui
o projeto humano, baixando-lhe a estatura heróica. No sistema
narrativo de sua obra, Rui Mourão coloca elementos aparentemente
em oposição, que interrompem a narrativa. O agenciamento
dos pormenores num contexto de paródia, donde as exigências
da narrativa contrariam a continuidade, faz do leitor cúmplice,
frustrando o desejo de coerência, enquanto o autor lhe propõe
uma nova figura de ordem: o fantástico. Coloca o leitor
dentro do quadro do fantástico e situa a ficção
dentro do universo temporal do leitor."(Revista Iberoamericana,
USA, abr.-jun. 1975)
Diretor do Museu da Inconfidência
- 1974 é um ano de reconhecimento e trabalho.
Rui Mourão toma posse no dia 14 de junho, no cargo de diretor
do Museu da Inconfidência, em Ouro Preto. Uma administração
difícil no começo. Período de muitos estudos,
planejamentos e projetos, pouca verba, e intervenções
necessárias, pois o prédio exigia uma manutenção
especial, principalmente na conservação de peças
valiosas. Foram construídos dois anexos e a implementação
mais ágil de serviços técnicos essenciais
se prolongou por vários anos. O trabalho frutificou e se
tornou referência para um sistema que unia todos os museus
e casas históricas do Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional em Minas Gerais. Tanto esforço
em prol da preservação da memória do acervo
público valeu a Rui Mourão, no ano de 1978, além
do cargo de diretor do Museu da Inconfidência, a coordenação
do Grupo de Museus e Casas Históricas de Minas Gerais,
e, posteriormente, a coordenação do Programa Nacional
de Museus. Muita responsabilidade, com a qual permanece até
hoje. E anuncia as boas novas: "Desde da época em
que o presidente Getúlio Vargas em 1942 trouxe de volta
ao Brasil os restos mortais dos inconfidentes degredados para
a África, e a inauguração oficial no dia
16 de agosto de 1946, em comemoração ao bicentenário
do poeta e inconfidente Tomás Antônio Gonzaga, as
instalações do Museu da Inconfidência não
sofreram alterações. Agora em 2005 vai ser a primeira
vez que o museu passará por uma reforma geral. Pois mesmo
com os anexos, o espaço se encontra pequeno para guardar
o acervo, os quais aumentaram em obras e qualidade, devido às
inúmeras aquisições, pesquisas e restaurações
de peças". As últimas aquisições
importantes foram o conjunto dos processos que tiveram curso na
justiça de Ouro Preto, durante os séculos XVIII
e XIX, os manuscritos musicais descobertos por Francisco Curt
Lange, pesquisador da música colonial, os Autos da Devassa
referentes aos réus eclesiásticos. Além dos
numerosos traslados da devassa de Minas Gerais e do Rio de Janeiro
que haviam permanecido em Portugal, como propriedade da família
do Conde de Galveas.
Retomemos a saga literária:
em 1978, sai a 2a. edição de Cidade Calabouço.
Lança mais um livro em 1979, Jardim Pagão. Sobre
o romance, F. S. Nascimento observa: "Usando a ficção,
em vez do ensaio, para questionar importantes problemas da atualidade.
Rui Mourão faz, à sua maneira, uma obra cheia de
denúncias, ressaltando os instrumentos de repressão
ao uso da palavra, mesmo que em defesa dos postulados nacionais.
Diríamos que sob a plumagem de sua prosa de ficção
se reúnem muitos fatos que, integrando a nossa contemporaneidade,
haverão de mais tarde servir de subsídios aos sociólogos,
historiadores ou cientistas políticos do futuro que pretendam
estudar as repercussões de idéias possivelmente
reais, mas só ficcionalmente assumidas por pregadores populares
como Ângelo e Militão." (Estado de Minas, Belo
Horizonte, 13 dez. 1980)
O ano de 1983 também lhe
é muito especial. Recebe a medalha comemorativa dos 75
anos do Museu Nacional de Belas Artes. Em outubro toma posse como
diretor do Museu da República, na cidade do Rio de Janeiro,
e publica mais um romance: Monólogo do Escorpião.
Edilberto Coutinho faz a seguinte apreciação favorável:
"Em livros anteriores, como Curral dos Crucificados, Cidade
Calabouço e Jardim Pagão, sentia-se muito forte,
no ficcionista, a presença do crítico e do ensaísta.
A crítica e o ensaio, porém, foram gêneros
que deixaram marcas profundas, no romance de Rui Mourão,
sem prejuízo do impacto dramático de suas narrativas.
Neste Monólogo do Escorpião, o ficcionista se renova,
recalcando o teórico, em favor de pura criação,
mostrando que nenhum desajuste existe em sua atividade múltipla
de escritor. Temos assim, em seu Monólogo do Escorpião,
toda a vida mineira reanimada com sopro próprio por um
verdadeiro artista da palavra escrita. Rui Mourão reconstrói
Minas Gerais (por extensão, o Brasil) a partir da reconstrução
do seu universo pessoal, de forma sempre convincente." (O
Globo, Rio de Janeiro, 3 de jul. 1983)
Prêmios e Medalhas
- Nos anos seguintes recebe uma premiação
internacional, duas nacionais e inúmeras medalhas. Sendo
as principais, em 1987, a Medalha Rodrigo Mello Franco de Andrade,
do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional e a Medalha da Ordem do Mérito Diamantinense,
no ano do sesquicentenário da cidade de Diamantina, Minas
Gerais, em 1988. Dois anos depois, em 1990, publica O Alemão
que Descobriu a América, ensaio sobre a pesquisa de Francisco
Curt Lange que, ao descobrir a obra dos compositores mineiros
do século XVIII, anexou 100 anos à história
da música no Brasil. Uma obra esclarecedora e justa homenagem
ao Mestre da Música, cujos manuscritos descobertos na década
de 1940, em suas viagens pelas Minas Gerais, fazem parte do acervo
do Museu da Inconfidência.
Em 1991, recebe a Medalha Santos
Dumont, grau Prata, e publica Boca de Chafariz, contemplado em
1992 com o Troféu Francisco Igreja, da União Brasileira
de Escritores do Rio de Janeiro, como o melhor romance do ano.
Em 1994, concorrendo com 427 obras publicadas pelos principais
autores do continente, Boca de Chafariz é agraciado, na
Colômbia, com reconhecimento Especial do Premio Pegaso de
Literatura Latinoamérica, do Centro Regional para o Fomento
Del Libro em América Latina y el Caribe (CERLALC), Colômbia.
Boca de Chafariz é considerado por muitos críticos
o melhor romance de Rui Mourão, que assume e revela a sua
ligação afetiva com a antiga Vila Rica: "Escrevi
o romance Boca de Chafariz, uma estória de renascimento.
Renascimento da cidade-monumento contra todos os fatores que tramam
a sua degradação, destruição e morte.
Renascimento do escritor que, deixando para trás um passado
de criatividade que nunca o desonrou, desejava se comprometer,
noutro plano, com um presente de mais conseqüente renovação,
de ambição de maior perenidade. Ouro Preto proporcionou-me
talvez a aventura limite da minha carreira intelectual. Por isso
eu a enxergo sempre com olhar de encantamento." (Suplemento
Literário do Minas Gerais, Belo Horizonte, abr. 2004).
Outro mineiro, Affonso Romano de
Sant´Anna, destaca Boca de Chafariz: "Original e intrigante
esse romance de Rui Mourão onde o autor, que há
anos dirige o Museu de Ouro Preto, conta uma história fantasticamente
mineira: imagina Ouro Preto sendo destruída por um avassalador
temporal e onde figuras que se relacionam com sua história
voltam para salvá-la. Misturam-se surrealisticamente Aleijadinho
e Rodrigo Mello Franco, Tiradentes e Aloísio Magalhães,
os inconfidentes, Guignard, Tarquínio de Oliveira, Edson
Mota, Jair Inácio e muitas outras personagens vivas e mortas
numa carnavalização da história. É
uma narrativa histórica, onde sobretudo os mineiros voltarão
aos subterrâneos de sua alma." (O Globo, Rio de Janeiro,
29 jan. 1992)
No ano de 1995, relança uma
nova versão, atualizada, do livro Museu da Inconfidência
(publicado, inicialmente, em 1984, com a contribuição
do historiador Francisco Iglésias), com a colaboração
de vários professores, historiadores e críticos
de artes plásticas. Em 1996, mais um romance: Servidão
em Família. O foco muda de lugar: o cenário é
a capital mineira. Despindo a alma dos personagens, desmascarando
a tão falada tradicional família, e tocando na questão
principal de todo o sistema: o dinheiro. Como examina num olhar
afiado o escritor Duílio Gomes: "Servidão em
Família é o retrato sem retoques de uma instituição
falida. (...) O texto elegante e reflexivo de Rui Mourão
passeia pela insensatez e por uma Belo Horizonte dividida entre
os muitos ricos e os sem nada. O confronto entre classes sociais
é patético. Madame Bovary parece ter sido o modelo
no qual se inspirou o autor para compor sua tresloucada personagem
feminina. E Sêneca - que nem sequer é citado no livro
- poderia estar na epígrafe com a sua máxima ´uma
grande fortuna é uma grande servidão´."
(Estado de Minas, Belo Horizonte, 23 jan. 1997)
Em 2001, mais um livro: Invasões
no Carrossel. Em 2002, mais um prêmio: o Jabuti da Academia
Brasileira de Letras, como o melhor livro-ficção
do ano de 2001. Agora, a temática é mais contemporânea.
Como analisa Cláudio Leitão: "O guerrilheiro
Carlos Lamarca, nome de impacto na história recente do
Brasil, é personagem de Invasões no Carrossel, de
Rui Mourão, ensaísta e romancista premiado com Boca
de Chafariz (1992). Morto pelas forças oficiais, inicia
e encerra a narração reflexiva, para contar a morte
da amante e a sua própria morte. Fernando Collor de Mello
é o outro nome que se transfunde em personagens de ficção
nesse mesmo carrossel de vozes giratórias. O tom é
cambiante e profético. O livro abrange a campanha, o curto
mandado presidencial e a deposição de Collor e seus
aliados. Nomes conhecidos e inventados tornam-se igualmente personagens.
Realidade e ficção querem se fundir. (...) Fantástico,
absurdo e ´nonsense´ são recursos encontrados
em equilíbrio, no plano do romance. Na fatura da obra,
o uso de cartas, diários e toda a sorte de escrita pessoal
encontrada em romances como ´Crônica da Casa Assassinada´,
de Lúcio Cardoso, e ´Boquinhas Pintadas´, de
Manuel Puig, é material reciclado com êxito por Mourão."
(Jornal de Resenhas, Folha de S. Paulo, 10 ago. 2002)
O cruzamento das linhas do processo
criativo de Rui Mourão atravessa o universo de Minas Gerais
e deságua no Brasil. Desde a remota Bambuí, onde
nasceu, Formiga, Divinópolis, Belo Horizonte ou a barroca
Ouro Preto. Cidades-Mundos, por onde passou e ainda passa; e na
sua trajetória biográfica como bom morador das Alterosas,
enxerga e repara bem de perto o povo, identifica-se com os seus
temores, seus conflitos, suas esperanças, e, o principal:
seus causos e a boa prosa. Navegando por terra observa as montanhas
e o céu. Na confluência do horizonte, uma inquietude
sadia e o amadurecimento intelectual, apontam novas reflexões,
novas perspectivas, sem nunca perder o prumo das palavras. Em
tempo algum renuncia o extremo cuidado com que trata a língua.
Desta fonte, e como assinala o jornalista Alécio Cunha,
"Catando o pó cósmico da história",
a travessia ligeira e de bom passo do escritor Rui Mourão,
para o deleite, nos oferece um banquete de livros, capaz de prender
a atenção e sempre nos revitalizar, nos sacudir
nas poltronas. O ponto máximo da ficção apresenta-se
na forma de artifícios destemidos em seus jogos de linguagens
num processo criativo, marcado por um eterno jogo de idéias,
com exercícios polifônicos infinitos. Que nos surpreende
do início ao fim. A qualidade da sua ficção
e ensaios é dignamente a confirmação da presença
emancipada e a procura de vasos comunicantes férteis e
dilatadores para um intelectual de várias facetas. A sua
presença mineira celebra o encontro de vários personagens
em obras imaginativas, sempre em expansão, migrantes e
cinéticas. Dotadas de uma prolongada sede de liberdade,
onde os leitores, com certeza, a partir de seus apontamentos atuais
feitos nas viagens de idas e vindas, de ônibus, diariamente
entre Belo Horizonte e Ouro Preto, receberão aquilo que
é do reino da boa literatura: o domínio da técnica,
as metáforas elaboradas, a ficção exigente,
a escrita expressiva, ousada, fantástica, gerativa de sentidos
amplificados e o mais notável: a emoção.
Impressionante, perturbada, abrasadora - que detesta todo e qualquer
tipo de aprisionamento. Ambiciosa, perceptiva e alicerçada
na tradição e na consciência de um passado
rico e reflexivo, com raízes firmes, moderna e viva neste
mundo de culturas híbridas.

José Aloise Bahia (Belo Horizonte/MG). Jornalista e
escritor. Pós-graduado em Jornalismo Contemporâneo. Autor de Pavios
Curtos (no prelo pela anomelivror). josealoise@aol.com
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