A
Sociedade do Espetáculo
(por José Aloise Bahia)
Em março de 2004 realizou-se um Ciclo de Conferências no Palácio
das Artes, Belo Horizonte, MG. Uma temática instigante: Muito
Além do Espetáculo. Para registrar a influência, toda as reflexões
sobre a imagem e o espetáculo têm a sua origem num livro essencial:
A Sociedade do Espetáculo / Comentários sobre a Sociedade do Espetáculo,
de Guy Debord (Editora Contraponto, Rio de Janeiro, 2000). Participaram
intelectuais brasileiros e estrangeiros: Adauto Novaes, Eugênio
Bucci, Jorge Coli, Nelson Brissac Peixoto, Evgen Bavcar, Maria
Rita Kehl, etc. Cada qual em seus campos específicos dissertaram
sobre a Cultura da Imagem e A Sociedade do Espetáculo em suas
novas configurações, estimulando inquietantes reflexões e desafios
contemporâneos.
Alguns chamam esta contemporaneidade de pós-modernidade, talvez
daí derivou o título do Ciclo de Conferências (Muito Além = Pós).
Aliás, parece que tudo hoje é pós. Pós-isto, pós-aquilo (neologismos
com hífens). O que faz desperta questionamentos de toda ordem,
pois vivemos num tempo complexo, dinâmico e acelerador, mesclado
de espetáculos naturais e artificiais, interdisciplinaridades,
algumas interatividades, teorias da recepção, revisões nos conceitos
de qualidade e comportamentos éticos necessários (Conselho Federal
de Comunicação Social, ombudsmans, ouvidores, etc.) no campo da
comunicação social, enfim bombardeios e influências de todas as
partes, num mundo de Culturas Híbridas (Pensamento Complexo e
Culturas Híbridas são termos de Edgard Morin). Mas esta é uma
discussão de grande dimensão. Fica para outra oportunidade. Pois
bem, voltando ao Ciclo de Conferências, lá pelo terceiro/quarto
dia, eis o meu espanto: menos de 10% dos participantes (talvez
nem isto) conheciam o livro de Guy Debord. Averigüei esta situação
sentando em locais diferentes, dia após dia, e perguntando aos
ouvintes se tinham informações ou referências sobre o autor. Um
comportamento até certo ponto meio cara-de-pau, mas valeu a amostragem.
Observei também que a organização do evento não espreitou uma
demanda básica e potencial em torno do livro, pois existiam pessoas
de áreas de conhecimentos distintos e interessados no assunto.
No final das contas, somente o Eugênio Bucci tangenciou, através
de premissas básicas e conclusões apressadas, o livro de Debord.
Terminado o Ciclo de Conferências bateu uma vontade danada de
descrever alguns detalhes e divulgar este livro que eu considero
importante, atual e duma inestimável validade e ajuda nas reflexões
deste mundo contemporâneo individualista e globalizado. De tão
importante eu até o utilizo na confecção de outro livro, que está
em curso para a publicação no campo da comunicação. Quase um ano
após o Ciclo de Conferências "Muito Além do Espetáculo" retomo
o assunto. Vamos à resenha.
O
livro de Guy Debord e suas influências - A gênese do pensamento
contemporâneo sobre a questão do espetáculo tem suas raízes no
pensador situacionista pós-marxista francês Guy Debord (1931-1994)
e em seu livro "A Sociedade do Espetáculo / Comentários sobre
a Sociedade do Espetáculo". A primeira parte - A Sociedade do
Espetáculo - foi escrita em 1967. O livro e a Internacional Situacionista
(com suas derivas e intervenções urbanas, ordenando o cenário
material da vida. E o seu caráter e o papel "público" de romper
a identificação psicológica dos indivíduos, instigando-os a agir
contra qualquer tipo de opressão do sistema) foram importantes
instrumentos de pensamento e ação dos estudantes, na França, em
maio de 1968. O caráter contestatório da obra de Debord incita
a todos, numa luta acirrada contra a perversão da vida moderna
que prefere a imagem e a representação ao realismo concreto e
natural, a aparência ao ser, a ilusão à realidade, a imobilidade
à atividade de pensar e reagir com dinamismo. O pensador contemporâneo,
Jean Baudrillard, autor de Simulacros e Simulações (Editora Relógio
D'Água, Lisboa, Portugal, 1991), também recebeu influências de
Debord.
O ponto de partida do livro é uma crítica ferina e radical contra
todo e qualquer tipo de imagem que leve o homem à passividade
e a aceitação dos valores preestabelecidos pelo Capitalismo. Para
o filósofo, cineasta e ativista francês a sociedade da época estava
contaminada pelas imagens, sombras do que efetivamente existe,
onde se torna mais fácil ver e verificar a realidade no reino
das imagens, e não no plano da própria realidade. Servindo-se
de aforismos, no primeiro deles Debord afirma que, "Toda a vida
das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção
se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o
que era vivido diretamente tornou-se uma representação". Ou seja,
pela mediação das imagens e mensagens dos meios de comunicação
de massa os indivíduos em sociedade abdicam da dura realidade
dos acontecimentos da vida, e passam a viver num mundo movido
pelas aparências e consumo permanente de fatos, notícias, produtos
e mercadorias.
A Sociedade do Espetáculo é o próprio espetáculo, a forma mais
perversa de ser da sociedade de consumo. Como bem observa José
Arbex Jr., no livro Showrnalismo: a notícia como espetáculo (Editora
Casa Amarela, São Paulo, 2001): "O espetáculo - diz Debord - consiste
na multiplicação de ícones e imagens, principalmente através dos
meios de comunicação de massa, mas também dos rituais políticos,
religiosos e hábitos de consumo, de tudo aquilo que falta à vida
real do homem comum: celebridades, atores, políticos, personalidades,
gurus, mensagens publicitárias - tudo transmite uma sensação de
permanente aventura, felicidade, grandiosidade e ousadia. O espetáculo
é a aparência que confere integridade e sentido a uma sociedade
esfacelada e dividida. É a forma mais elaborada de uma sociedade
que desenvolveu ao extremo o 'fetichismo da mercadoria' (felicidade
identifica-se a consumo). Os meios de comunicação de massa - diz
Debord - são apenas 'a manifestação superficial mais esmagadora
da sociedade do espetáculo, que faz do indivíduo um ser infeliz,
anônimo e solitário em meio à massa de consumidores´".
Desta maneira, as relações entre as pessoas transformam-se em
imagens e espetáculos. "O espetáculo não é um conjunto de imagens,
mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens", argumenta
Debord. O consumo e a imagem ocupam o lugar, que antes era do
diálogo pessoal, através da TV e os outros meios de comunicação
de massa, publicidades de automóveis, marcas, etc., e produz o
isolamento e a separação social entre os seres humanos. Por exemplo,
a questão da droga será tratada na TV (algumas telenovelas brasileiras
mais recentes abordaram tal assunto), e não no seio familiar.
Ocorre aí uma devastadora inversão da noção de valores. O espetáculo
se constitui a realidade e a realidade o espetáculo. Já não se
tem um limite definido para as coisas.
Efeito sanduíche realidade-ficção/ficção-realidade - Com
a presença incessante dos meios de comunicação de massa o homem
passa a ser e a viver uma vida sonhada e idealizada, onde a ficção
mistura-se à realidade, e vice-versa, incorporando-se a realidade
vivida pelo indivíduo. Interessante citar, e tudo leva a crer
que, apartir das idéias de Debord, Eugênio Bucci apresenta as
cinco leis não escritas (não explicitadas) da televisão brasileira
no livro Brasil em Tempos de TV, da Boitempo Editorial, 1997.
Sendo as principais o efeito sanduíche realidade-ficção/ficção-realidade:
os telejornalismos (o reino da realidade) se organizam como melodramas
(o reino da ficção), e as novelas (reino da ficção) vai se alimentar
no reino da realidade. Quem nunca viu os problemas do mundo real
sendo explicitados nas telenovelas? Decorre daí que o reino da
notícia bebe no da ficção, e vice-versa. Emoção e razão formatam
o pêndulo a ser seguido. Produzindo um entendimento parcial, fragmentado,
e nunca pleno do mundo dos acontecimentos. Num desdobramento,
este plano de ação por parte das emissoras perpassa toda a programação
da televisão, principalmente no horário noturno. O esquema é o
seguinte: um programa alicerçado no real (noticiário, documentário,
grandes reportagens, etc.) e em seguida outro no reino da ficção
(novelas, filmes, etc.), e por aí vai se alternando. Debord, enfaticamente,
observa que esta imagem manipulada da realidade pelos meios de
comunicação de massa faz com que um outro reino, o das emoções
(raiva, felicidade, etc.), assim como a justiça, a paz e a solidariedade
sejam apresentadas como espetáculos. Os meios de comunicação de
massa criam a partir daí uma realidade própria para que a sociedade
se solidarize e crie novos critérios de julgamento e justiça conforme
os seus conceitos manipuladores.
Estas novas tecnologias no campo da informação intentam na capacidade
de percepção dos indivíduos e dificultam a representação do mundo
pelas atuais categorias mentais. A sociedade transforma-se numa
Sociedade do Espetáculo, onde a contínua reprodução da cultura
é feita pela proliferação de imagens e mensagens dos mais variados
tipos. A conseqüência disto é uma vida contemporânea superexposta
e invadida pelas imagens, operacionalizando um novo tipo de experiência
humana, caracterizada por um modo de percepção, onde é cada vez
mais difícil separar a ficção da realidade. A mídia, principalmente
a televisiva, passa então a atuar de maneira decisiva na definição
das agendas e dos temas que norteiam todo o processo cultural
e social relevantes. Como observa Debord, "O conceito de espetáculo
unifica e explica uma grande diversidade de fenômenos aparentes.
Sua diversidade e contrastes são as aparências dessa aparência
organizada socialmente, que deve ser reconhecida em sua verdade
geral. Considerado de acordo com seus próprios termos, o espetáculo
é a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida - isto
é, social - como simples aparência. Mas a crítica que atinge a
verdade do espetáculo o descobre como a negação visível da vida;
como negação da vida que se tornou visível".
O ambiente é o da manipulação, onde o homem acaba sendo governado
por algo que ele próprio criou. Relembrando MacLuhan, "Os homens
criam as ferramentas, as ferramentas recriam os homens". A visão
de mundo já é de outra ordem e natureza. Como afirma Debord: "Quando
o mundo real se transforma em simples imagens, as simples imagens
tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento
hipnótico. O espetáculo, como tendência a fazer ver (por diferentes
mediações especializadas) o mundo que já não se pode tocar diretamente,
serve-se da visão como sendo o sentido privilegiado da pessoa
humana - o que em outras épocas fora o tato; o sentido mais abstrato,
e mais sujeito à mistificação, corresponde à abstração generalizada
da sociedade atual. Mas o espetáculo não pode ser identificado
pelo simples olhar, mesmo que este esteja acoplado à escuta. Ele
escapa à atividade do homem, à reconsideração e à correção de
sua obra. É o contrário do diálogo. Sempre que haja representação
independente, o espetáculo se reconstitui".
Espetáculos concentrado e difuso - Debord caracteriza o
espetáculo de dois tipos: o concentrado e o difuso. Ambos, centrados
na noção de unificação feliz e, posteriormente, acompanhado de
mal-estar, desolação e pavor. O tipo concentrado é essencialmente
burocrático e ditatorial. Uma situação típica do tipo concentrado
de espetáculo advém dos antigos regimes comunistas (URSS), onde
o Estado impunha a identificação popular através do espetáculo
e com isso escondiam a verdadeira realidade socioeconômica. Outro
exemplo: a hegemonia dos atletas alemães orientais e soviéticos
nas Olimpíadas das décadas de 1960 e 1970. Com suas conquistas
garantiam internamente a imagem de uma suposta supremacia da ordem
estabelecida sobre uma outra exterior. O triunfo maquiando os
eventuais desgastes do regime em relação a outras realidades no
campo dos Direitos Humanos, alimentação e trabalho.
Atualmente, Cuba é um exemplo clássico deste tipo de espetáculo
concentrado. Não devemos esquecer do Brasil pós 1964, com os slogans
e lemas políticos-propagandísticos "Brasil, ame-o ou deixe-o"
e "Este é um país que vai frente", cantados, reproduzidos nas
rádios e Tvs, e usados pelos militares para consubstanciar e silenciar
as atrocidades cometidas e a inoperância, mascarado por um milagre
econômico, à custa de um endividamento externo estrondoso. O espetáculo
difuso está presente em regimes mais democráticos, onde a superprodução
de mercadorias em marcas variáveis induz e garante uma aparente
"poder de escolha", entretanto fazendo crer que os indivíduos
vivam num reino falso da "liberdade de escolha".
Posteriormente, em 1988, Guy Debord retoma a discussão em Comentários
sobre a Sociedade do Espetáculo. Ampliando a temática, reconhece
que o domínio do espetáculo é o grande vencedor e integrador de
toda a sociedade. Onde tudo que se apresenta aos cidadãos e consumidores
somente pode ser confirmados, cada vez mais pelas imagens e o
marketing, tendo o público de certa forma de confiar naquilo que
foi "criado" para ele. Ou seja, o critério da verdade e validade
da realidade é tudo aquilo que foi noticiado. Se a mídia em geral
não noticiou e nada em público foi comentado sobre determinado
acontecimento, faz com que as pessoas tornam-se céticas quanto
à veracidade de outros tipos de informações. Por mais que elas
tenham vivenciado determinado acontecimento fica no ar a pergunta:
"será que realmente isso aconteceu?" Em outras palavras, se o
fato não foi noticiado, divulgado, não teve registros imagéticos
sobre tal, ele não deve ter acontecido. É a realidade transformada
em imagem, o espetáculo, em realidade. É o reino do espetáculo
suplantando a realidade. Reiterando, se o fato não apareceu na
TV e jornais, ele não aconteceu.
Como confirma Debord, "No plano das técnicas, a imagem construída
e escolhida por outra pessoa se tornou a principal ligação do
indivíduo com o mundo que, antes, ele olhava por si mesmo, de
cada lugar aonde pudesse ir. A partir de então, é evidente que
a imagem será a sustentação de tudo, pois dentro de uma imagem
é possível justapor sem contradição qualquer coisa. O fluxo de
imagem carrega tudo: outra pessoa comanda a seu bel-prazer esse
resumo simplificado do mundo sensível, escolhe aonde irá esse
fluxo e também o ritmo do que deve aí se manifestar, como perpétua
surpresa arbitrária que não deixa nenhum tempo para a reflexão,
tudo isso independe do que o espectador possa entender ou pensar".
Total desinformação da sociedade - Uma conseqüência séria,
segundo Debord, é a total desinformação da sociedade. Não a desinformação
como negação da realidade, e sim um novo tipo de informação que
contém uma certa parte de verdade, o qual será usada de forma
manipulatória. "Em suma, a desinformação seria o mau uso da verdade".
E, o mundo da desinformação é o espaço onde já não existe mais
o tempo necessário para qualquer verificação dos fatos.
Assim analisa Debord, "Ao contrário do que seu conceito espetacular
invertido afirma, a prática da desinformação só pode servir o
Estado aqui e agora, sob a sua direção direta, ou por iniciativa
dos que defendem os mesmos valores. De fato, a desinformação reside
em toda a informação existente; e como seu caráter principal.
Ela só é nomeada quando é preciso manter pela intimidação, a passividade.
Quando a desinformação é nomeada, ela não existe. Quando existe,
não é nomeada".
Esta nova sociedade do espetáculo e desinformação, de acordo com
o autor, é o universo, onde tudo é possível. Um grande Carnaval
caracterizado pelo desaparecimento de critérios de verdade e validade,
que antes eram referenciados em atitudes e funções específicas
desempenhadas no mundo do trabalho. Neste contexto, por exemplo,
um médico pode ser, além de médico, cantor e ator ao mesmo tempo,
e aparecer na televisão defendendo o uso de determinado produto,
marca ou remédio de ponta, de determinado laboratório, como sendo
o mais eficaz contra determinada doença, fratura ou inflamação.
Bem como pode aparecer também em programas de auditório e novelas,
garantindo e corroborando o status científico, e a noção do bom
e do belo, do asséptico e o efeito dourado de bem-estar do produto
para a saúde dos consumidores e cidadãos. Este seria um outro
novo aspecto que alimenta e afirma que o espetáculo não pode parar,
e que todos podem um dia ter a possibilidade, nem que seja em
15 minutos de fama, de se tornarem artistas e aparecer na televisão.
Desta maneira, parte da modernidade e a época atual são as faces
desta Sociedade do Espetáculo, do consumo e da fragmentação. E,
de acordo com as idéias de Debord - apocalípticas, extremistas,
impiedosas e lúcidas em seus julgamentos -, esta sociedade é a
negação da própria humanidade, que em sua plenitude procura um
certo tipo de felicidade em meio ao esfacelamento da capacidade
de liberdade de escolha, já totalmente preenchida em seu imaginário
pela satisfação garantida, a partir de um real fabricado, que
finca e irradia os seus espectros num mundo cada vez mais saturado
pelas imagens.
José Aloise Bahia (Belo Horizonte/MG). Jornalista
e escritor. Pós-graduado em Jornalismo Contemporâneo. Autor de
Pavios Curtos (no prelo pela anomelivror). josealoise@aol.com
Voltar