A
morte manda mensagens
(por Eurico de Andrade)
Lá no sertão é crença comum que quando
se vai levar um defunto para enterrar, não se pode parar. Pra
nada. O morto tem que estar sempre em movimento. Sempre pra frente.
Se os carregadores querem fazer mal a alguém é só parar com o
defunto nas terras desse alguém ou na frente da sua casa. É desgraça
na certa para o dito cujo. Por isso, donos de terra ficam de butuca
quando passa carregamento de defunto. Até tiro dão se há ameaço
de parar. Os carregadores têm que ser rapidinhos. Dar sossego
depressa à alma do morto pra o distinto não ficar com raiva nem
vagando por aí.
Pois bem. Num certo dia de janeiro, eis que morre o Deusdete.
Homem novo ainda. Cufou por causa do barbeiro. Choro para os parentes
e pesar entre os amigos. Defunto tinha que ser enterrado. Xico
Vitrola, seu amigão do peito, arruma mais cinco para carregar
o corpo do Deusdete até o cemitério de Tabuí. Caminho longo, de
quatro léguas. Botam o defunto numa rede, onde passam uma vara
bem grossa e, dois a dois, vão carregando o amigo até a cidade
dos pés juntos. Cansaço muito. Diminuem um pouco a marcha e andam
e andam. Tardezinha chegando. Pispiando a noite concluem que não
dá para chegar a Tabuí antes do fechamento do cemitério. Negócio
é descansar e continuar no rompante da manhã.
Cada um se ajeita como pode. Morto é deixado num canto. Puxam
o ronco. Cansaço dos diabos. Só o Xico Vitrola, pesaroso com a
morte do amigo e medroso como ele só, não consegue pegar no sono
e fica apreciando a lua cheia, toda brilhosa, no céu. Lá pelas
tantas, com os olhos ainda arregalados, vê uma coisa que o deixou
de cabelos em pé. O morto parece que se levanta e vem caminhando
em direção ao grupo de amigos, no rumo dele. Passa por cima de
um, assim meio no ar. Passa pelo outro e mais outro, até passar
pelo quinto. Tudo muito de leve, parecendo fantasmado. Quando
Deusdete vai passar por cima do Xico, este não se contém e apronta
o maior berreiro, soltando os gritos represados na garganta:
- Pra cima de mim não, coração! Por amô de Deus, Deusdete! Vai
pro seu corpo, diabo! Cruzcredo!... Avemaria!... Creindeuspadre!...
Com a gritaria do Xico da Vitrola, companheirama acorda pedindo
explicação. Quecofoi? Queco não foi? Deixa disso, minha gente!
Nossa Senhora da Aparecida!... Explicado bem explicadinho, alguns
acharam graça e outros ficaram com a pulga atrás da orelha, preocupados.
Um deles foi o Ocride:
- Óia, gente! Isso é castigo de Deus. O morto num discansô até
agora porque a gente num interrô ele. Deusdete deve tá divera
puto da vida cagente!
- E o diacho é que ele passô inriba de nóis, né sô?... Isso é
mau siná. Queira Deus que certas coisa qui o povo fala seja só
boataria...
Foi o que conseguiu completar João Bentinho, todo cismado, o primeiro
que o espírito do Deusdete passou por cima. Daquela hora pra frente
ninguém mais dormiu. Só o Juca Morais é que ainda, de madrugadinha,
conseguiu tirar uma pestana. Afinal, ele não acreditava nas lorotas
que o povo conta.
- Uai, sô! Dexa de bobage, gente! Larga de mão disso! Quem morreu,
morreu! Num vorta mais. O Xico tava era com sonhação!
Na metade da manhã chegaram com o corpo frio e duro do Deusdete
no cemitério. Enterraram o amigo. Passaram num boteco para molhar
a goela e se mandaram de novo, estrada a fora, rumo do sertão,
cada qual pro seu canto.
Xico Vitrola, naquele ano, teve que fazer o trajeto de carregamento
de defunto mais cinco vezes.
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