I
want to be alone
(por Lauro Adolfo Dourado)
Eu tive um grande amigo. Não, não
é desses amigos de cachaça, nem companheiro de trabalho e nem
desse amigo recente que a gente vê de vez em quando. Chamava-se
Gerson e era meu primo. Desde pequenos que nós nos conhecíamos.
A princípio, uma amizade comum, de fazer traquinagens na Vila
Camargo em São Miguel Paulista que era o lugar onde morávamos
em São Paulo. Depois percebi que aquele garoto tinha uma curiosidade
obsessiva, tudo querendo saber e dando opinião. Ele sempre foi
opinativo, jamais aceitando passivamente os argumentos que lhe
apresentavam. E começamos nossa maratona de descobertas. A princípio
tornei-me seu mestre, depois fui dispensado desta função e acabamos
sendo mestre e discípulo simultaneamente um do outro. Isso não
foi o resultado de algum acordo, como a princípio pode-se pensar.
Seria um modo de se relacionar bastante artificial, como fazem
as pessoas que estão adequadas em seus papéis sociais. Detestávamos
qualquer tipo de artificialidade, por isso éramos considerados
rebeldes e combatíamos na medida do possível o que não nos servia
na sociedade. Queríamos viver nossas vidas pouco nos importando
com os possíveis comentários. Aliás, os comentários negativos
criavam em nós mais energia e vontade de transgredir. Nessa época
terrível de Paulos Coelhos, Laires Ribeiros, Lauros Trevisans,
de astrólogos, tarólogos, espiritualistas e toda sorte de charlatães,
não é considerado bom para a saúde ter ódio. “Não odeiem”, dizem
eles, “amem o seu próximo, sejam bons vizinhos”, “tenham pensamento
positivo”. Dou uma banana para todos que estão legislando em causa
própria pois ficam apavorados com a possibilidade de serem desmascarados.
Nada como cultivar um bom ódio contra a mediocridade, contra os
farsantes, contra o comportamente politicamente correto, contra
o bom mocismo. Nós, eu e o Gerseno Véio tínhamos um ódio santo
contra todo tipo de empulhação. Na verdade o Gerseno me salvou
pois eu tinha uma tendência irreprimível de ser um bom moço e
acabaria fatalmente casando cedo, criando uma penca de filhos
e mergulhando inevitavelmente no rancor e frustração provocados
por uma vida sem alegria. Lembro-me de minha primeira paixão!
Como foi avassaladora, maravilhosa, frustante, terminal como só
uma paixão adolescente pode ser. E o Gerseno participou de tudo
pois foi testemunha de meus sofrimentos e alegrias, sendo meu
aliado nos propósitos que eu pretendia atingir com o objeto de
minha paixão. A tempestade passou como tudo passa nesta vida.
Restou uma saudade branda que alegra os meus dias. Depois veio
outras e mais outras como é de praxe em nossa natureza.Mais tarde
eu vim para a Bahia e o Gerseno ficou lá. E eu o visitava e ele
me visitava, para que não perdéssemos o contato. Ele pintava e
esculpia e eu escrevia e ambos respeitávamos a arte um do outro.
Brigamos muito: um com o outro e contra tudo e contra todos e
digo com toda convicção, que foi exatamente esse espírito guerreiro
que fez nossa arte crescer. Nada como uma boa batalha para fazer
o ser humano adquirir estatura moral e artística. Falando assim,
até parece essas elegias piegas que as pessoas fazem para seus
amigos mortos. Odeio elegias mas não posso de deixar de falar
do meu irmão Gerseno Véio. É bom que se diga que ele me chamava
de Laureno Véio. E por que isso? Por causa de John Lennon de quem
éramos fãs ardorosos, daí o apelido. Mas ele gostava também de
Mick Jagger, de Frank Zappa de Bob Dylan e outros astros do rock
rejeitados pelos mauricinhos. Sua aparência desleixada e transgressora
causava repulsa nas pessoas que eram ligadas a mim. Nem por isso
deixei de ser solidário com ele. Quem não gostasse que tomasse
outro rumo, incluindo aí parentes e esposas. Ele não vivia por
aí caindo pelas tabelas. Era bastante lúcido e as drogas não o
derrotaram. Nossos preconceitos eram poucos, considerávamos que
o importante era agir, sair do marasmo, da pasmaceira, rejeitar
“ambientes sadios” e pessoas de “boa reputação”. Podemos até frequentar
ambientes sadios e sermos amigos de pessoas de boa reputação.
Podemos até ser cidadãos exemplares, cumprindo nossos deveres.
Mas o espírito tem de ser livre, a imaginação tem de voar buscando
horizontes sem limites. Nesse sentido ele simbolizava o irracional,
a entrega sem reservas, a imaginação voando livre e criadora,
enquanto eu era o racional, a mente analítica que mantinha a imaginação
sob estrito controle. Mas ambos tínhamos o mesmo sonho: criar
uma arte que fosse livre, pintar e escrever sem o controle da
mente, deixando o pincel e a caneta correrem soltos sobre a tela
e o papel. Por isso éramos loucos por Salvador Dali, o pintor
surrealista e Lautreamont e seu livro “Os cantos de Maldoror”.
O universo de nossos interesses era amplo: Carlos Castanheda,
Jackson Pollok, Clarice Lispector, cogumelos alucinógenos, a magia
das pedras, numerologia, astrologia, tarô, I Ching, sonhos, James
Dean, blues, rap, heavy metal, Black Sabatt, Led Zeppelin, Velvet
Underground, cartuns, Robert Crumb, sexo, palavras, imagens, cordel,
natureza selvagem, Lampião, Fernando Pessoa, Jimmi Hendrix, cangaço,
cinema, Jethro Tull, José Celso Martinez Correia, Stepenwolf,
Luiz Gonzaga, Dylan Thomas, música clássica... É compreensível
porque as esposas tenham ciúmes das amizades de seus maridos.
No casamento há direitos, deveres e obrigações que trazem uma
enorme carga de ressentimentos. Há linhas demarcadas que não podem
ser transpostas. O relacionamento então torna-se uma farsa com
os cuidados que se toma para não se cometer erros que possam abalar
a união conjugal. A(o) amante, é um recurso para se tentar escapar
desta camisa-de-força. E o amigo é a permissão para sermos o que
realmente somos. Mas, assim como no casamento, para que a amizade
mantenha-se firme e forte há necessidade de conflitos de vez em
quando. Afinal, são duas pessoas com personalidade própria e cada
qual tem sua opinião. É natural, portanto, que haja divergências.
A vantagem da amizade é que não se vive junto. Viver junto é muito
desgastante como sabem todos os casais. Não sinto muita falta
do Gerseno. Não sinto porque ele está incorporado em mim. Agora
pouco assisti o filme dos Rolling Stones, Gimme Shelter, onde
eles se apresentaram no Madison Square Garden e em Altamont nos
Estados Unidos em 1969. O concerto em Altamont foi o fim do sonho
de Woodstock, vez que os Hell Angels assassinaram um negro em
frente ao palco, além de muito espancamento e outras mortes. O
Gerseno iria gostar pois era fã dos Stones. Lembro-me que enquanto
eu curtia Let it be dos Beatles ele curtia Let it Bled dos Stones.
Jamais curti Their Satanic Majestic Request e The Beegars Banquet,
os discos malditos dos Stones. Deles gostei de Get yer ya-ya’s
out, a apresentação ao vivo do Madison Square Garden e Altamont.
O Gerseno iria adorar esse filme. Talvez eu o tenha comprado por
sugestão dele. Como disse, ele agora está incorporado em mim.
O que me torna muito mais completo. O Gerseno participou de minha
existência durante 40 anos. Ele sabia tudo sobre mim. Mais do
que meus pais, mais do que as mulheres com quem convivi, mais
do que outros amigos, mais do que qualquer outra pessoa. Ele era
o guardião dos meus segredos, assim como eu era dos dele. Não
digo que tudo foi transparente. Ninguém sabe sobre a totalidade
da vida de outra pessoa. Afinal, é necessário haver um certo grau
de privacidade, de resguardo, até para o bem de nossa sanidade
mental. Há necessidade de haver em nós, um recanto de exclusiva
propriedade nossa. Algo que só nós sabemos e conhecemos e ninguém
mais. É exatamente essa particularidade que nos dá a sensação
de liberdade, de independência. Mas eu e o Gerseno tínhamos bem
poucos segredos um para o outro. Agora, com sua morte, como fico?
Estarei só, irremediavelmente só e sem ninguém a quem dizer as
coisas? Ficarei perdido, sem a possibilidade de aferir meus conhecimentos,
de compartilhar minhas novas descobertas? O amor é uma palavra
que perdeu o sentido ou estou sabendo do seu exato significado?
Guardo em mim algum segredo que gostaria de dizer ao Gerseno ou
não tenho mais nada a dizer? Isso tudo saberei daqui para a frente.
Desde já, contudo, sinto que possuo muito mais força, muito mais
criatividade. Os horizontes se ampliam e não há ninguém mais para
contestar o que vivi ou deixei de viver. Meu passado me pertence,
o que me leva a concluir que minha vida me pertence. Sou o único
guardião dos meus segredos o que me dá amplas possibilidades de
criar em cima disso. Quando Greta Garbo abandonou a carreira artística,
ela disse: “I want to be alone”. Como J.D. Salinger, como Thomas
Pinchon. Eu também want to be alone. Contudo, a imbecilidade humana
não me atormenta pois posso tolerar uma ampla variedade de comportamentos
e personalidades. O importante, ou o segredo, é se resguardar
mantendo nossa alma longe, muito longe do vasto oceano da barbárie
que está tomando conta de tudo.
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