Entrevista de Gustavo Dourado(DF)a Milene
Dias Alves(SP)
01
- Qual o significado da Literatura de Cordel?
GD - É muito amplo e
pode ter vários significados. Depende da formação e visão
de quem analisa o objeto. Cada um pode dar um significado.
Depende da posição e conhecimento. Em suma:
Literatura de Cordel é uma composição vocabular em versos
de origem ibérica(com raízes provençais) que retrata o universo
da poesia popular e do romanceiro/cancioneiro de origem latina,
com destaque para a poesia provençal e ibero-hispano-lusitana.
Geralmente é desenvolvida em sextilhas, sétimas, oitavas e
décimas. Os mais experientes dominam os dodecassílabos e os
alexandrinos. Numa fase posterior ao descobrimento do Brasil,
com os colonizadores portugueses, a literatura de cordel adentrou-se
pelo Brasil afora, a partir de Salvador na Bahia e ganhou
o Sertão do Nordeste com as entradas e bandeiras dos colonizadores
portugueses em suas peripécias em busca do ouro e de abertura
de novas frentes geográficas e desbavadoras, com a criação
de gado. O Rio São Francisco teve um papel fundamental para
a expansão da Literatura de Cordel, pois liga MInas e Bahia
a Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Liga o interior do Brasil
ao vasto oceano, o nosso mar imenso de Camões, Amado e Pessoa.
Depois o cordel conquistou as capitais a partir de Recife
e João Pessoa e desenvolveu-se em importantes centros como
Campina Grande, Caruaru, Juazeiro do Norte, Petrolina e Juazeiro
da Bahia. Pode-se deduzir que Gregório de Matos tenha sido
o nosso primeiro cordelista, por sua verve crítica, irônica,
satírica e mordaz, uma especie de precursor de Castro Alves,
Leandro Gomes de Barros, Cuíca de Santo Amaro e Patativa do
Assaré. Gregório teve excelente formação e foi um cordelista
refinado, assim como o poeta Antônio Frederico de Castro Alves,
um dos baluartes na luta contra a escravidão, que ficou consagrado
com o mítico Navio Negreiro e as brilhantes Espumas Flutuantes.
Castro Alves era também um repentista e improvisador de primeira.
Os seus embates verbais com Tobias Barreto são dignos de estudo
e pesquisa. Pode-se verificar trechos dos desafios entre os
dois mestres em Castro Alves: Retrato de um Poeta, do Cineasta
Sílvio Tendler, trabalho de alto nível no qual empreendi pesquisa
minunciosa.
Em síntese: Literatura de Cordel é a poesia do povo, do sertanejo
nordestino, do pau de arara. Do pequeno agricultor, dos sem-terras
e sem-tetos, desempregados e subempregados desse vasto Brasil.
O cordel tem mudado muito com o advento da multimídia, das
novas tecnologias e da internet. Muita gente tem feito cordel
mesmo ser ser nordestino. O cordel é poesia universal: Do
Brasil e do Mundo. Jorge Amado, Guimarães Rosa, Clarice Lispector,
Manuel Bandeira, Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos
Drummond de Andrade, Vinícius de Moreas, Cecília Meireles,
Mário Faustino, Torquato Neto, Cora Coralina, Dias Gomes,
João Ubaldo Ribeiro, Adonias Filho, Herberto Sales, Afrânio
Peixoto, Rachel de Queiroz, Anísio Teixeira, Josué de Castro,José
Américo de Almeida, Orígenses Lessa, Luís da Câmara Cascudo,
Auta de Souza, Ariano Suassuna, Paulo Freire e tantos outros,
beberam nas fontes inesgotáveis da literatura de cordel e
da poesia popular de boa qualidade. Isso sem falar de tantos
músicos e compositores, Luiz Gonzaga, Raul Seixas, Elomar,
Alceu Valença e Zé Ramalho a frente, que tiveram na literatura
de cordel fontes para as suas pesquisas e desenvolvimento
de suas criações.
02
- É viável o trabalhar da Literatura de Cordel na sala de
aula?
GD - Sim. É uma excelente
forma de levar a poesia para sala de aula.É preciso sair do
automatismo dos livros didáticos permissivos e adotados sem
critérios pedagógicos e sem respeito às culturas regionais
dos alunos. Há uma imposição de conteúdos. O Cordel universaliza
as informações pois trabalha com temas diversificados e temas
transversais. Desde Anísio Teixeira, Lauro de Oliveira Lima
e Paulo Freire, algumas experiências foram realizadas com
sucesso em quase todo o Brasil. É preciso acabar com o preconceito
contra a poesia do povo. Grandes mestres da literatura brasileira
já registraram a sua grandiosidade e capacidade de influência..
03
- O Cordel na sala de aula traz resultados satisfatórios.
Quais?
GD - *Facilita a leitura
e compreensão de textos.
*Desenvolve o senso crítico e a análise reflexiva do aluno.
*Põe o aluno em contato com a tradição oral e o roamnceiro
popular
*Permite uma melhor expressão verbal e escrita
*Mostra um outro lado da História não contada nos livros didáticos
tradicionais
*Facilita o contato do aluno com a rima, a métrica e o ritmo
poético do povo
*Leva novas informações para quem não tem acesso direto a
meios de comunicação mais independentes e alternativos
*Desperta no aluno a criatividade poética e um contato direto
com uma poesia de origens milenares e que se mantém ao longo
do tempo, apesar de todas as intempéreis sistemáticas.
04
- Qual a receptividade ou hostilidade dos professores na introdução
de projetos embasados pelo Cordel?
GD - Alguns professores
mais críticos e criativos percebem as armadilhas do sistema
editorial e midiático e procuram novas formas de ensino e
novas abordagens educacionais. Infelizmente a maioria faz
o jogo fácil dos esquemas didáticos das editoras e adotam
o que lhes é sugerido, sem a menor crítica e análise.Tem muitos
interesses escusos e poucos percebem as garras do bicho-papão.
Eles(os industriais e empresários do livro) querem o lucro
imediato e descarregam sobre nós toneladas de excrementos
e absurdos filol´gicos e estilísticos. Os governos falham
nesse quesito e compram cada vez mais livros de conteúdo duvidoso.
A indústria do livro tem tido lucros astronômicos de bilhões
de dólares, enquanto a maioria dos bons escritores passam
por dificuldades financeiras e sofrem sem espaço, sem mídia,
sem apoio e sem divulgação. Isso quando conseguem publicar
alguma coisa.. Precisamos nos libertar das armadilhas do opressores
da linguagem. É preciso fazer uma revolução na educação brasileira.
Não se pode esquecer jamais da qualidade. Só a quantidade
não basta. Não adianta se alimentar em excesso com comida
ruim. É preciso comer bem, para se ter uma boa digestão. Infelizmente
muitos não tem nem o que comer. E comem e lêem o que lhes
é permitido.
05
- O Cordel como recurso pedagógico, é uma estratégia eficaz?
GD - Sim. Eu mesmo já
empreguei em sala de aula com os meus alunos e tive excelentes
resultados. Depende da capacidade do professor de fazer um
bom emprego desse recurso fantástico. É um recurso pedagógico
extremamente eficaz que foi utlizado pelo grande mestre Paulo
Freire e por outros professores criativos. O cordel pode ser
empregado como poesia e ser integrado à música e às artes
plásticas. Até no cinema, no vídeo e na internet pode ser
utlizado como esperiência pedagógica.
06
- Qual é o seu olhar a respeito do ensino da Literatura de
Cordel nas Unidades Escolares do Estado de São Paulo?
GD - Não tenho grande
conhecimento sobre o assunto. Preciso me informar melhor.
Já ouvi dizer que há boas experiências em sala de aula, com
a presença de cantadores e cordelistas. A atitude é louvável
e recomendável para os demais professores. É um assunto que
preciso ter um maior conhecimento. A experiência que tenho
é no Distrito Federal, em escolas de Brasília, Gama, Ceilândia,
Taguatinga, Guará, Cruzeiro, Candangolândia, Planaltina, entre
outras. O que apliquei por aqui teve um bom retorno. Apresentei
também alguns trabalhos na UnB, UniCeub, Católica e em diversas
faculdades de Brasília. Houve uma boa receptividade por parte
de alunos e professores.
07
- São Paulo tornou - se palco da miscigenação brasileira.
Como resgatar a Literatura de Cordel nas Unidades Escolares?
GD - São Paulo é um
palco cultural de grande expressão artística e cultural. Aí
se mescla as diversas culturas e linguagens. São Paulo é cosmopolita
e metropolitana e reflete com mais expressividade o que se
desenvolve pelo Brasil afora. Rio e São Paulo são espécies
de capitais culturais do Brasil. Concentram as editoras, universidades,
provedores, as distribuidoras, as gravadoras, as mídias, tvs,
rádios, jornais e revistas. São centros da indústria cultural
e do mercado editorial. Urge uma descentralização e democratização
dos meios de produção e divulgação cultural para também alcançar
os médios e pequenos centros periféricos das outras regiões.
É preciso regionalizar e universalizar ao mesmo tempo. São
Paulo precisa valorizar mais o seu povo mais sofrido, que
é a grande colônia nordestina, sertaneja e interiorana que
habita as favelas e cortiços da nossa Babilônia pós-moderna.
Levar mais cordel, poesia e arte para as escolas. Realizar
oficinas, treinamentos, debates, encontros, shows e seminários
já seria um bom começo. Os governos do Estado e do Município
precisam valorizar cada vez mais a nossa cultura popular.
Aí se concentra o segundo e o terceiros orçamento(PIB) do
Brasil. E o que se faz pela cultura?! Será sufciente?!...
Tenho as minhas dúvidas.Deve-se fazer mais.
08
- Os discentes apropriam - se de muitas informações e tecnologias.
A utilização de sextilhas é um caminho propício à busca de
novos conhecimentos?
GD - Sim. A sextilha
é a alma da literatura de cordel. Sem querer tirar o valor
das sétimas, oitavas e décimas, é a sextilha que povoa o universo
mítico dos cordelistas. A sextilçha permite um melhor enquadramento
e encadeamentos dos versos e das palavras. A sextilha é mágica
e tem uma expressão poética viva e de alta resolução. Quem
tem bom domínio da sextilha tem tudo para ser um bom poeta
de cordel. A sextilha é pura ciência da poesia e sã consciência
do verso.
09
- Quais as vantagens e as desvantagens quanto a utilização
do Cordel associado aos métodos de alfabetização?
GD - Só vejo vantagens.
Se tiver desvantagens ainda não as conheço.
Para mim as principais vantagens para uma alfabetização em
cordel são as seguintes:
* Desenvolvimento da oralidade e da verbalização.
*Agilidade no processo de comprensão e análise dos fatos
*Desenvolvimento do raciocínio lógico com o domínio da métrica
*Domínio de uma linguagem tradicional, que passa de pai pra
filho de geração em geração
*Contato com outras fontes de informação que transcendem o
livro didático
*O cordel pode ser utlizado nos diversos aspectos do interdisciplinar
e do transversal
*O aluno que contata o cordel na alfabetização ganha em musicalidade
e toma gosto pela poesia e pelas diversas formas da arte popular.
10
- É possível olhar a Literatura de Cordel como instrumento
desencadeador do trabalho interdisciplinar e com os temas
transversais?
GD - Sim. A Literatura
de Cordel é interdisciplinar por natureza. Ela une a música
com a poesia. Integra a platicidade das artes visuais e pode
ser aplicada de forma satisfatória com tema tranversal. É
preciso que se faça um bom planejamento para aproveitar o
que se tem de melhor dessa linguagem rica e expressiva.
11
- Ao seu ver, qual é a maior dificuldade em implantar a Literatura
de Cordel como ferramenta pedagógica nas classes dos anos
iniciais do Ensino Fundamental?
GD - A dificuldade maior
está no domínio do mercado editorial e da indústria cultural
com seus livros didáticos caóticos, acríticos, alienados e
ultrapassados. Eles impõem livros e mais livros amorfos, alienantes
e ocos todos os anos. Muitos sem sentido. Livros que estão
fora do contexto e de um bom padrão cultural. Não vêem a interdiscplinaridade
do ensino e nem as peculiaridades de cada região. Vendem-se
culturas alheias ao nosso pensamento. Os assuntos são jogados
de qualquer maneira. Não há lógica. Tem as exceções e alguns
livros são razoáveis.No geral, são medíocres. Examinei muitos
deles.
Além dos mais, há uma especie de colonialismo interno do Sul
sobre o Norte e das culturas hegemônicas sobre as culturas
periféricas. Usam a televisão, o rádio e os jornais para impor
a globalização, o neoliberalismo e a cultura da violência
e da alienação. Dão ao povo uma cultura sórdida, sangüinária,
totalmente desqualficada. O lixo do lixo holliwoodiano da
pior espécie. Filmes, best-sellers, jogos e músicas de mau
gosto. Há uma verdadeira invasão da baixa cultura norte-americana
e a midiocridade das novelas, do besteirol e dos enlatados.
Muito gente ganha dinheiro com isso. Quem critica essa sordidez
fica no índex da maldição e é riscado das páginas dos jornais,
das telas da tv e não encontra editores e distribuidores.
Quem não reza na cartilha dos poderosos editores, fica sem
espaço e à margem do mercado. A escola precisa mudar e acabar
com essa dominação que nos é imposta pelos colonizadores e
asseclas da indústria cultural midiática opressiva e escravocrata.
Infelizmente grande parte da imprensa faz o jogo do capital,
pois se vende às jogatinas dos anúncios fáceis e rentáveis
do mercado publicitário de aluguel e alienador da consciência
da população. Se vendem por 30 mil moedas de ouro e por um
punhado de milhares de dólares e euros. Com as devidas e mínimas
exceções. Estamos vendidos ao capital midiático e editorial
estrangeiro.
Acabaram com os suplementos literários e os cadernos de cultura.
Hoje o que se tem é uma mera reprodução dos interesses do
mercado editorial, que paga polpudos jabaculês e facilidades
de maketing, para impor as suas midiocridades e excrescências
literárias e artísticas. Há exceções, com certeza. Falam bem
do que é ruim e nada falam ou falam mal do que é bom. Há uma
inversão de valores. Muitos fazem o jogo do mercado, inclusive
boa parte dos jornalistas e professores que não questionam
os métodos aplicados e os livros didáticos adotados. Livros
que mais deseducam do que educam. Livros de baixa qualidade
educacional e de fraco conteúdo. Tenho pena de nossos alunos.
O cordel quebra tudo isso com a sua tradicional originalidade.
É cultura de raiz. É regional, mas não deixa de ser universal.
Segue a filosofia do mestre russo Leon Tolstói:
"Se queres ser universal, cante a tua aldeia."
12 - As xilogravuras
podem compor conceitos matemáticos e interdisciplinares?
GD - Sim. A xilogravura
é uma arte fantástica e pode expressar mil elementos da linguagem
plástica. Ela se incorpora muito bem à literatura de cordel.
É como arroz e feijão. Quem conhece os trabalhos xilográficos
de J.Borges, Dila, Gilvan Samico ou Abrãao Batista sabe do
primor de arte que é uma boa xilogravura. Quando integrada
ao cordel torna-se uma verdadeira obra-de-arte. Uma obra-prima.
13 - Faz -se necessário
a utilização da métrica com os discentes dos anos iniciais
do Ensino Fundamental?
GD - Sim. A métrica
é fundamental. Ela se incorpora com a evolução da linguagem
e está presente em nossa musicalidade. As crianças são musicais
por natureza. Em cada uma delas habita um Mozart, Bach, Villa-Lobos,
Noel Rosa, Cartola, Chiquinha Gonzaga, Dalva de Oliveira,
Dona Zica, Dona Neuma, Chico, Ary, Patativa, Catulo, Caetano,
Sérgio Sampaio, Itamar Assunção,Geraldo Vandré, Elomar e um
Pixinguinha. A criança é poesia pura. A métrica faz parte
do seu processo de criação. É uma referência quase genética.
Muitos repentistas e cordelistas são praticamente analfabetos
em relação à educação formal, entretanto são grandes mestres
da poesia e da métrica. Vejam o caso do Cego Aderaldo e de
Patativa do Assaré. A métrica da poesia popular independe
de educação formal. Ela vem pelo uso e pela prática no cotidiano.
É importante para os alunos iniciantes que se demonstre a
boa poesia dos cordelistas e dos mestres da poesia tradicional,
além dos clássicos. Viva a qualidade da boa poesia. O povo
a merece.
14 - As quadrinhas populares
podem ser integradas ao Cordel, ou são totalmente inadequadas?
GD - Sim. Podem e devem.
Não vejo problemas. As quadrinhas são uma espécie de cordel
resumido. O cordel é uma evolução das trovas e quadras. Os
primeiros cordelistas e poetas provençais eram conhecidos
como trovadores e menestréis.Geralmente quem faz quadra ou
trova se passar por um processo de treinamento pode dominar
com certa facilidade a sextilha e outras modalidades da literatura
de cordel. Quem domina o cordel domina a quadra.Geralmente
toda sextilha tem uma quadra em seu interior. O Cordelista
trova, enquadra e desenquadra o verso com habilidade e domínio
de alquímago da poesia.