Gustavo Dourado (Amargedom): "O
Poeta do Apocalipse", entrevista à jornalista e pesquisadora
francesa Emmanuelle Delabosse
Gustavo Dourado (Amargedom):
"O Poeta do Apocalipse", entrevista à jornalista
e pesquisadora francesa Emmanuelle Delabosse
Entrevista
a Emmanuelle Delebosse para Tese de Doutorado
Tema:
Gustavo Dourado (Amargedom): "O Poeta do Apocalipse"
Université
Antilles Guyane (Martinique)
Emmanuelle
Delebosse
Sobre
o cordel em geral:
Emmanuelle
Delabosse – Você pensa que é muito importante
nos estudos sobre a literatura de
cordel sistematicamente lembrar que ela tem uma origem européia
e
ibérica? Não acha que hoje em dia representa
a identidade sertaneja?
GD - Temos que ter ciência,
clareza e consciência de nossas origens ibéricas
e afro-ameríndias e sempre afirmar e reforçar
a nossa identidade rural e sertaneja...
O cordel mesmo tendo suas raízes tradicionais na Europa
medieval, vem
de muito longe, das tradições mais antigas dos
nossos ancestrais e
antepassados lusitanos, hispâncicos, latinos, tupis,
guaranis, afros, hebreus, fenícios, egípcios,
sumérios, mesopotâmicos, caldeus, babilônicos,
persas, árabes, gregos, romanos, arianos, bárbaros,
vikings, celtas, gálios, normandos, asiáticos,
indus, chineses, enfim é uma síntese poético-cultural
que recebeu influência de todas as grandes tradições
poéticas da antigüidade.
Aqui no Brasil ganhou uma identidade sertaneja (via Leandro
Gomes de
Barros, poetas e repentistas), mais a sabedoria popular dos
grandes cordelistas e poetas cantadores , enriquecida pela
cultura indígena e a cultura africana.
No Sertão, o cordel se transformou em voz dos oprimidos,
em grito dos
excluídos, dos sem-tudo e dos sem-nada...
Com o avanço do cordel veio o baião, o forró,
o xote, o xaxado, o
aboio, o maracatu, a ciranda e várias ramificações
da cultura popular brasileira, nordestina por excelência...Luiz
Gonzaga, Zé Ramalho, Raul Seixas, Glauber Rocha são
(é) a síntese de todas essas linguagens
Emmanuelle
Delabosse – os folhetos lembram pelos temas e pela
forma tradicional os
folhetos ibéricos mas em que as populações
índias e escravos negros
contribuiram para o desenvolvimento da poesia oral?
GD - O aboio dos vaqueiros,
as cantigas dos índios e o canto dos negros
deram vivacidade e enriqueceram a oralidade do cordel e do
repente. Os contos e cantos populares dinamizaram o verbo
cordeliano e ampiaram o seu
alcance nas fazendas, nas ocas e nos terreiros. As culturas
africanas
e indígenas tem forte presença oral e fizeram
simbiose com a cultura
ibérica. Daí surgiram novos ritmos e cantos
que incorporaram as
tradições milenares de várias culturas
ancestrais. Não podemos esquecer
da influência dos cavaleiros medievais e da literatura
cavalheiresca,
sobretudo da obra-prima de Cervantes: Dom Quixote.
A oralidade da poesia negra e indígena está
na alma e no sangue dos poetas cordelistas, repentistas, improvisadores
e por essência de todos os sertanejos do Brasil, sobretudo
do Norte-Nordeste....
Emmanuelle
Delabosse – O que você pensa do termo "cordel"
(que vem etimologicamente de
cordel, ficelle, corda em ocitan) de fato para designar a
literatura
popular nordestina? O fenômeno dos folhetos pendurados
sob ficela
existe no Nordeste ? desde quando ? Nunca vi isso?
GD - Cordel vem de cordium,
corda, cordial, coração. É a literatura
do
coração, da alma, do espírito...Os cordões,
as cordas eram usadas no
início, nas feiras, nas barracas e empórios
comerciais, principalmente
em Portugal. No Nordeste, usava-se muito as esteiras e tecidos
mais
grossos e resistentes para expor os folhetos. As cordas e
cordões eram usados esporadicamente. O poeta cordelista
usava muitos artifícios para fugir da rígida,
arbitrária e preconceituosa polícia e da fiscalização
do Estado, como pode ser visto no filme-documentário
" O homem que virou suco", de João Batista
de Andrade, onde o poeta é muito bem representado pelo
magistral ator José Dumont. Temos os filmes geniais
de Glauber Rocha, como Deus e o Diabo na Terra do Sol, O Dragão
da Maldade contra o Santo Guerreiro, autênticos romances
de cordel do fantástico cineasta da Bahia e nome de
destaque do cinema latino-americano e universal...
Emmanuelle
Delabosse – Faz parte de uma associaçao de
cordelistas como a "Academia do
Crato" por exemplo ou prefere ser independente?
GD - Sou mais independente,
entretanto nada tenho contra as escolas e
academias representativas. São centros culturais importantes
para divulgar a poesia de cordel.. Tenho simpatia pela Academia
do Crato e pela Academia Brasileira de Literatura de Cordel.
Essas entidades têm um importante papel na preservação
e divulgaçao de nossa literatura popular. No Orkut,
faço parte da Comunidade da Academia do Crato e já
fui publicado na Academia Brasileira de Literatura de Cordel,
com o Cordel para Pixinguinha. www.gustavodourado.com.br/cordel/Cordel%20para%20PIXINGUINHA.htm
Sou membro do Sindicato dos Escritores e da União Brasileira
dos Escritores, entre outras entidades culturais que podem
ser verificadas em: www.gustavodourado.com.br/biografia.htm.
Emmanuelle
Delabosse – A instruçao dos poetas e a chegada
dos poetas eruditos na produção
do cordel é um sinal do desaparecimento progressivo
da literatura
popular (destinada unicamente ao povo) ou um sinal de uma
evolução
(como você explica o interesse cada vez mais forte dos
estudantes e
pesquisadores para o mundo literário do cordel?)
GD - O cordel está
na alma do povo. Tem forte presença oral e está
arraigado nos costumes e na cultura do nordestino, mais ainda,
dos
sertanejos. Não houve muita evolução
na estrutura formal do cordel.
Ele se adaptou aos novos ritos e às novas tecnologias.
A Internet
reforçou e revitalizou o cordel pois permitiu uma nova
forma de
divulgação e de distribuição,
de maneira mais independente e autônoma.
Agora, o folheto é cibernético, informático,
eletrônico. Surgiu uma nova modalidade: o cibercordelismo...O
cordelista multimídia, ritmado com o computador, a
internet e a informática...Webcordel...Cybercordel...Com
a Internet o interesse e o acesso ao cordel foram bastante
ampliados. Temos vários cordelistas que cada vez mais
escrevem pela Internet, e eu sou um deles.. É uma revôolução
na forma de divulgar a poesia. E os estudantes e pesquisadores
de várias univesidades cada vez mais se interessam
pelo assunto. Um dos pioneiros foi o saudoso professor da
Sorbonne/Poitiers, Raymond Cantel...
Emmanuelle
Delabosse – O que tem que fazer os poetas cordelistas
para continuar a manter a
tradição do cordel?
GD - Precisam ler os
antigos cordelistas e incentivar os novos. É
preciso ficar atento às novas linguagens, sem esquecer
de preservar a
tradição dos folhetos, dos abcs, dos romances,
dos arrecifes. A Internet é um importante ponto de
apoio. É um dos grandes aliados do cordelista de hoje.
Ele pode escrever em sextilhas, septilhas, como antigamente,
só que em alta velocidade, sob os acordes e ritmos
da interatividade da Web.
Sobre
O Apocalipse:
Emmanuelle
Delabosse – Como se introduziu o tema do Apocalipse
na poesia nordestina em
verso? Como migrou o tema da Europa para o Nordeste?
GD - O nordestino além
da poética que ferve no sangue tem a mística
à
flor da pele. O Apocalipse sertanejo vem desde os bandeirantes,
os garimpeiros, da epopéia de Zumbi dos Palmares, de
Conselheiro e do mito do Sebastianismo, reforçado pelas
crendices e lendas e pela leitura elementar da Bíblia
e dos catecismos, dos almanaques e do Perpétuo Lunário
ou Lunário Perpétuo. Deve-se a Leandro Gomes
de Barros a inclusão de temas sociais, políticos
e religiosos no cordel. O Apocalipse sempre esteve presente
na Literatura de Cordel e sempre foi tema recorrente nas discussões
do sertanejo, que tem visão própria sobre o
tema. Monstros, dragões, pragas, sinais, profecias,
fim do mundo, animais misteriosos, máquinas fantásticas,
hecatombes, seca e misérias são presenças
marcantes na infância de qualquer sertanejo. Aí
soma-se a forte superstição e as
crenças místicas provindas de mitos como Besta-Fera,
Anti-Cristo, Falso Profeta; sem esquecer do arquétipo
Jesus Cristo, Maria, apóstolos, discípulos,
profetas, santos, beatos e milagreiros, Antônio Conselheiro,
Antônio Silvino, Lampião, Maria Bonita, Corisco,
Padre Cícero e Frei Damião. O Terceiro Mundo,
a América Latina e o Nordeste vivem o seu Apocalipse
a cada dia: a fome, a miséria, a seca, o analfabetismo
e os problemas do subdesenvolvimento e do colonialismo interno/externo.
Vivemos em estado permanente de Apocalipse. A realidade se
desvela e se revela na poética da fantasia do homem
do sertão...
Emmanuelle
Delabosse – Apocalipse é fonte de inspiraçao
para você . Usa bribas de
evangelho aprendidos de memória ou estudou o texto
de maneira
exegética?
GD - As duas coisas.
Aprendi muito sobre o Apocalipse no próprio livro
de São João e ouvindo relatos populares do sertânicos,
da Família
Dourado: dos irmãos-rezadores João Azevedo e
Tolentino Azevedo( meu
padrinho), ambos curandeiros e místicos católicos
sertanejos. Fillhos do
filósofo-pregador popular católico Francisco
"Chiquinho" de Azevedo.
Tive a influência de João Cardoso, Amália
Dourado
e de Antônio Teixeira que me incentivaram a pesquisar
e ler catecismos,
a Bíblia, principalmente o livro do Apocalipse.
Não posso esquecer a influência familiar de minha
mãe Edelzuíta de Castro Dourado, fiel à
fé católica e ao misticismo sertanejo e ao ecletismo
do meu pai Ulissses Marques Dourado, que me ensinou a ler
a Biblia e o cordel desde a minha primeira infância
(aos três anos).
Meu pai Ulisses foi do catolicismo ao protestantismo.
Ele começou no catolicismo e depois atuou com os presbiterianos
de Recife dos Cardosos-Ibititá, Lapão e Irecê,
depois freqüentou a Igreja Batista
e comungou com a doutrina dos adventistas.
Em Brasília contatou os Testemunhas de Jeová,
Pentecostais e Assembléia de Deus. Por meio do parente
Orivaldo Dourado desde pequeno eu ouvia as
polêmicas filosóficas dele com os crentes e católicos
ao defender a
doutrina de Allan Kardec e os princípios do Espiritismo.
Falva-se até de discos voadores, os objetos voadores
não identificados...
Ouvia isso desde menino...
O misticismo é muito forte no interior da Bahia, por
ali há de quase
tudo. Desde menino tomei contato com as doutrinas esotéricas
via
Despertar dos Mágicos e de alguns livros ocultistas.
Por meio do primo
Lauro Adolfo conheci alguns mistérios do conhecimento
esotérico. Há
muitas crendices e lendas sobre livros mágicos e malditos
como O Livro
de São Cipriano (capa preta) e a Cruz de Caravaca.
Há muitas lendas
sobre corpo fechado, rezas fortes e mandingas. Ouvia as histórias
sobre Manuel Quirino, Militão Coelho, Horácio
de Matos e as rezas dos cangaceiros, bandidos e jagunços.
Em tudo isso há doses apocalípticas,
o mito do fim dos tempos, do Armagedom e de uma Nova Era,
da Nova Jerusalém. Novos céus e novas terras,
o Quinto Império, a volta de Dom Sebastião,
a Pedra do Reino, cidades perdidas, sonhos, mitos, lendas,
magias do Sertão, mangangás...mandingas, umbanda,
quimbanda, candomblé, de tudo um pouco...
Tudo isso num paralelo da carnificina republicana perpetrada
em Canudos.
Emmanuelle
Delabosse – Você é realmente fiel ao
texto de Joao? A sua visao do Apocalipse
não é estritamente popular?
GD - Li muitas vezes
o livro do Apocalipse. Mas creio na mistura, na
simbiose, nas influências e confluências dos mitos,
das palavras e das
vertentes culturais e literárias. Tem o lado erudito,
da exegese e tem
o lado popular do romanceiro de cordel, dos causos, das lendas,
crendices, superstições. As duas coisas se fundem
e criam um universo
mágico da caatinga e dos rochedos sertanejos. Ibititá,
Ingá, Recife dos Cardosos, Meios, Boa Vista, Canarana,
Lapão, Tanquinho, Umburana,Mulungu, Uibaí, Barra
do Mendes, Barro Alto, Gentio do Ouro, Lagoa dos Patos, Central,
Irecê, Gruta dos Brejões, Iraquara, Morro do
Pai Inácio, cidades perdidas, lagoas mágicas,
pedrasencantadas, pedras de todos os tipos, pedras de arrecife,
rochas, rochedos, águas subterrâneas, aqüíferos,
locas, grutas, tocas, cavernas, lapões, cacimbas, tanques,
árvores retorcidas, mulungus, xique-xiques, mandacarus,
quiabentos, o caosmos do Sertão...Tudo isso gera uma
visão cósmica de um mundo de vertente medieval
em choque dialético com as reformas, as mudanças,
advindas pelo rádio, a eletricidade, o automóvel,
a tv, a mídia, o computador, a Internet e
as novas tecnologias...O fim do mundo é uma ameaça
constante. As Centúrias do Sertão são
escritas em cordel e são proferidas no canto
mágico dos repentistas,deElomar, Xangai, Zé
Ramalho, e nos aboios dos vaqueiros e nas rezas das beatas,
no canto dos ciganos, no clamor dos sertanejos que esperam
por dias melhores, prometidos pelos políticos e aventureiros
nefastos. Os novos Nostradamus falam pelas teclas do computador
e pelos caracteres da Web...
Emmanuelle
Delabosse – Tem uma visao pesoal do Apocalipse?
GD - Sim...Tenho uma
visão poética, cordeliana...É uma forma
mista de
ver o mundo em seus vários aspectos que vai do social,
religioso,
tecnológico, cósmico, universal ao mítico
e místico de um sertanejo-trovador...
O Apocalipse para mim é a revelação dos
mistérios universais...
Emmanuelle
Delabosse – O texto de Joao é texto dificil;
o que pensa dos seus simbolos?
que representa para você , os quatro cavaleiros por
exemplo?
GD - É um livro
simbólico carregado de mitos, lendas, adjetivos. Tem
influência do Egito, da Mesopotâmia, Iraque, da
Índia, da Palestina, de Israel. Ali vejo a Kaballah,
o Tarot, a alquimia, o Graal, a Tábua das Esmeraldas,
os cavaleiros, os templários, os Cátaros, os
mistérios da alta magia, a essência das coisas
ocultas, as miríades celestiais, Shambhalla, Agartha,
um mundo profético, divino, místico, cabalístico,
celestial, maravilhoso. Os quatro cavaleiros do Apocalipse
têm vários significados estão ligados
à fome/miséria/calamidades/pestilências,a
guerra/revoluções, a morte/tranformação,...O
cavalo branco e o seu cavaleiro pode ter duplo significado
poder ser o Anti-Cristo e o próprio Messias, o filho
de Deus. É preciso sabedoria e uma boa pesquisa/interpretação
para compreender/decifrar os sete selos do Apocalipse...
Emmanuelle
Delabosse – Se nos regruparmos em diacronia todos
os poemas de cordel
apocalíipticos nordestinos dos anos 40 a nossos dias
podemos quase
constatar que o tema do Apocalipse aparece muitas vezes em
tempo de
crise no Brasil ...Concorda com isso?
GD - Sim. Aparece sempre
e aparecerá a cada dia, enquanto houver
desequilíbrios, corrupção, desmandos,
mazelas e injustiças sociais.
Estamos em crise permanente.
O nosso Apocalipse é cotidiário, contínuo
e é salpicado pela fome, a miséria, o desemprego,
o analfabetismo, a maracutaia, a falcatrua, a roubalheira,
a violência,o medo, a insegurânsia, o descaso
dos ricos com os mais pobres, a imoral concentração
derenda, os desvalidos, os sem-quase-tuto que nada têm...
Os despossuídos, vítimas dos poderosos, dos
ricos, dos capitalistas, dos usurários e avarentos
de uma elite tirana e cruel. Enquanto os excluídos
não tiverem vez o Apocalipse será real e fatídico,
assombroso...
Emmanuelle
Delabosse – Acha que a literatura apocaliptica pode
se tornar atualmente com
os eventos internacionais e mediatizados mais uma literatura
da
ESCRITA que da ORALIDADE. Quero dizer que poetas mais eruditos
tem
tendências a escrever para ser "ouvidos" e
se interessam cada vez mais
por problemas exteriores ao Nordeste? A passagem da escrita
à
oralidade é uma boa coisa para a cultura popular? Acha
que é bom para
os pesquisadores?...
GD - Sim...A oralidade
é permanente no cordel desde as origens. Veio bem antes
do escrito e passou de pai para filho e descendentes por essa
forma. Veio desde a Idade Antiga à Idade Média...Desenvolveu-se
com os trovadores provençais, os albigens, depois se
consolidou com a escrita, via imprensa, folheto impresso e
agora retorna à oralidade com o rádio, a tv,
a Internet e outras formas de comunicação. As
duas formas estão interligadas e são fundamentais
para o novo cordel.
Emmanuelle
Delabosse – Para o tema do Apocalipse você
adotou a sextilha (rima ABCBDB),
existe no cordel tambem septilha, décima ou ABC, porquê
o recurso da sextilha?
GD - Aprendi desde menino
com a leitura de Leandro Gomes de Barros e Rodolfo Coelho
Cavalcante a trabalhar com a sextilha e poucas vezes com a
septilha e muito raramente com a décima...Hoje a forma
mais constante é a sextilha com as suas formas variáveis.
A sextilha está incorporada desde a prima infancia.
É quase como um recurso oral.
Emmanuelle
Delabosse – A forma versificada não limita
a interpretaçao intelectual e sábia
do texto de João?
GD - Não. Pelo
contrário, até enriquece. Veja como são
ricas as epopéias da antiguidade, a Odisséia,
a Ilíada, Eneida e depois se acentua mais ainda com
a Divina Comédia de Dante e os Lusíadas de Camões,
Dom Quixote, de Cervantes... Muitas das grandes obras literárias
foram escritas por poetas e com os recursos estilísticos
da poesia. Até mesmo a Bíblia Sagrada, com Davi
e Salomão, utilizou a poesia, o verso, os aforismos,
em livros como Salmos, Provérbios, Cânticos,
A poesia está presente nos Vedas, no I Ching, no Tao
Te King, no Mahabaratha...Em quase tudo de bom que foi escrito
pelo homem tem poesia...
Sobre
A Guerra do Armagedom:
Emmanuelle
Delabosse – Explique a historia da redaçao
desse poema; foi cantado ou escrito
e depois cantado?
GD - Muitos dos meus
poemas nascem verbais advindos da forte oralidade do sertanejo.
Pelo menos em parte. Advem pela influência da linguagem
oral, dos repentistas e cantadores, dos causos e histórias.
dos sermões bíblicos, das pregações....Pelo
menos as inspirações quase sempre vêm
de forma oral e depois o pensamento se cristaliza na escrita.
Os meus poemas apocalípticos têm as duas características,
de origem oral depois se consolidam na escrita com a lapidação
e a carpintaria da linguagem poética...foi o caso do
Cordel do Apocalipes e da Guerra do Armagedom, entre outros...
Emmanuelle
Delabosse – Celso Magalhães em 1973, no livro
"poesia popular em verso do
Nordeste brasileiro afirma que que os trovadores populares
limitam-se
unicamente a repetir o que eles tem na memória. Isso
se justifica
agora nessa produção escrita?
GD - Hoje, não...
Até 1973 creio que isso poderia ser verdadeem parte,
mas não absoluta. Talvez isso fosse mais característico
dos repentistas, cantadores e emboladores, coquistas, mas
sempre em parte. Hoje o nível de informação
se multiplicou, os poetas estão mais informados, lêem
mais, buscam, pesquisam...Tem o conhecimento mais acessível
por meio da mídia, jornais, rádio, tv, cinema,
Internet, livros, revistas, textos, enciclopédias,
teses, propaganda, divulgação, publicidade,
telejornais etc...
Emmanuelle
Delabosse – Primeira estrofe: "preciso me apresentar/
sou poeta do destino:
porquê essa necessidade de reconhecimento?
GD - Não é
necessidade de re-conhecimento e mais de conhe.cimento. De
se conhe.ser, fazer conhecer, reconhecer-se... A apresentação
é um fato comum na literatura de cordel. Não
é necessidade de reconhecimento. É mera estilística
e retórica poética usada por muitos cordelistas
e repentistas como Leandro Gomes de Barros, Otacílio
Batista, Rodolfo Coelho Cavalcante, Manuel De Almeida Fiho,
Patativa do Assaré....Uso como mera abstração
fenomenológica...
Emmanuelle
Delabosse – Muitos aspectos "canto a guerra
no repente", léxico, expressões,
e frases do evangelhos transmitidas da oralidade aparecem
intactas
como " Guerra do Armagedom", "fim dos tempos",
"treme a terra" , "geme
o povo", "amargura, desgraça e destruição",
"praga, doença e
moléstia", "nação contra nação",
na "Grande rebelião", "grande dor,
grande desolação", "falsos profetas",
"Reino do Anti-Cristo",
"Babilônia", "um dilúvio de matar/fogo
água e meteoro", "os selos ja
foram abertos", "Gogue e Magog" etc..E se encontram
também nos poemas
orais e escritos de outros colegas cordelistas.
GD - Isso é uma
constante em minha poesia e não só no cordel.
Está no Cordel do Apocalipse, no Cordel do Armagedom,
em Phalábora, Linguátomo, Tupinambarbárie
e em muitos dos meus poemas experimentais...É a influência
direta da Bíblia, do Apocalipse de São João,
do Livro de Daniel, de Ezequiel, Isaías e de todos
os profetas, até mesmo das Centúrias de Nostradamus
e dos profetas sertanejos... Está presente em vários
cordelistas e repentistas do Nordeste, pois é uma cultura
que se assemelha em todos os estados e no nosso polígono
apocalíptico das místicas caatingas assombradas
pelos mistérios universais...
Emmanuelle
Delabosse – Quando você interpreta e recria
a visao de João "refaço a visão
do
Apocalipse" (estrofe n°4), tem o sentimento de acrescentar
ou exagerar
(pois o próprio da literatura popular é ser
paródica, estrofe n° 24
"tem Maria que é Zé / e tem Zé que
é Maria" ou de modificar o texto
inicial . Transcrever um texto codificado como o Apocalipse
em linguagem
simples e popular traz necessiariamente para a paródia?
A linguagem
divina é compativel com a lingugem popular? É
sincero na suas
interpretações ou quer satisfazer o público
popular?
GD - A paródia
sempre está presente... É a linguagem do meu
Sertão...Sou sincero e transparenteem minha poesia,
límpido como o cristal. Faz parte da minha natureza
e da minha cultura testificar o real com a verdade... Aprendi
com os meus pais. Vem de berço. Só que a realidade
e a fantasia tem fronteiras que se tocam e se unem...Vivemos
uma realidade fantástica, semelhante ao universo de
Gabriel García Marquez, de Rosa, Pessoa, Carpentier...
O nosso realismo fantástico é a cosmifantasia
do Sertão...O sertão é apocalptico em
sua origem...Com as suas lendas, parlendas, os massacres dos
índios, Canudos, a escravidão dos negros, os
quilombos, as rebeliões, os mitos dos ribeirinhos do
Rio São Francisco, do Jacuípe, do Paraguaçú,
Mirirós, do Rio Verde, do Rio Jacaré, a Vereda
de Romão Gramacho, as histórias dos garimpeiros,
os heróis populares, os amarelinhos, romãozinhos,
bocajes, camões, macunaímas, João Grilos,
Pedros Malazartes, Cancões de Fogos...Tudo isso foi
bem personificado por Ariano Suassuna em seu Auto da Compadecida
e está presente de forma mítica em Guimarães
Rosa, Mário de Andrade e em Jorge Amado, Herberto Sales...Gregório
de Matos, Castro Alves e leandro Gomes de barros foram precursores
dessa linguagem com as suas sátiras às estruturas
à época estabelecidas...
Emmanuelle
Delabosse – A sua técnica poética é
muito linda ; seus aspectos fônicos, e
imagens fortes procuram o prazer emocional e estético:
afinal escrever
ou improvisar para o povo é trabalho de criação
difícil?
GD - Sim. Não
é fácil ser artista.Tem que ter além
de muito talento, dom e
criatividade, bastante esforço, lapidação
e trabalho. O artista é luminar, luzeiro, farol, candeeeiro,
antena da raça,como dizia Pound. Tem que estar sempre
ligado em tudo. Precisa estar bem informado. Não deve
apenas se resumir à inspiração. Tem que
ter muita transpiração. Suar a camisa...Lutar
para esculpir as palavras,
as idéias, se substanciar com o que há de melhor
em todas as
linguagens. O cordelista de hoje é um multimídia,
um universalista.
Ele tem que estar a par das novidades e das notícias.
Ficar por dentro
dos fatos e compreender a dialética da transformação
e da revolução
permanente do mundo...
Sobre
o futuro da literatura de cordel: O céu e a web são
os limites...
Emmanuelle
Delabosse – Qual é o futuro do cordel? O fim
do mundo não é o fim da tradição,
o fim da poesia oral, do microscomo cultural encantado do
Sertão
onde as palavras, da voz do repentista são inocentes
e justas ? Acho
que mesmo os eruditos como você tem consciência
disso e respeitam os
antigos porque o cordel é um tesouro que alimenta a
alma e o coraçao
de todos.
GD - Sou erudito e popular.
O cordel nasceu e cresceu erudito na
Europa. Veja o caso dos reis-trovadores e dos trovadores provençais,dosalbigens.
É muito efêmera a fronteira do erudito e do popular.
O que é erudito
hoje pode vir a ser popular amanhã e vice-versa. O
cordel tem um
grande futuro pois é cultura popular e faz parte da
tradição de nosso
povo e dos povos do mundo. O que varia é só
o nome de lugar para
lugar... O que muda são os tempos, as eras, os modos.
A cultura do
povo se eterniza nos versos do poeta, cantador, repentista,
cordelista, trovador... O cordel está em Glauber Rocha,
Guimarães
Rosa, Ariano Suassuna, Cora Coralina, Rachel de Queiroz, Jorge
Amado,
Dias Gomes, João Cabral de Melo Neto, Bandeira, Zé
Lins, Drummond, José Américo, Rachel de Queirós,JoséHernandez/Martim
Fierro e nos nossos artistas e cantores: Luiz Gonzaga, Zé
Ramalho, Raul Seixas, Vinícius, Cordel do Fogo Encantado,
Quinteto Violado, Alceu Valença, Fagner, Geraldo Azevedo,
Amelhinha, Diana Pequeno, Sá e Guarabira, Geraldo Azevedo,
Elba Ramalho, Ednardo, Dominguinhos, Geraldo Vandré,
Sérgio Ricardo, Gil, Caetano, Chico, Milton, Villa-Lobos,
Cartola, Pixinguinha, Zeca Baleiro, Lenine, Chico Cézar,
Elomar, Xangai, Chico Science, Paulo Matricó, Clodo,
Climério e Clésio e tantos outros... Está
presente na arte, música, no cinema, no teatro e na
nossa literatura...O cordel será um dos pilares da
literatura brasileira do futuro e se converterá cada
vez mais em um dos alicerces de nossa rica cultura...O cordel
é apocalíptico por natureza, profético,
uma autêntica revelação de nosso povo
criativo...
Emmanuelle
Delabosse – Os jovens alunos deveriam estudar o cordel
nas salas de aulas?!...
GD - Seria muito importante
para melhorar o nível cultural. Cordel e leitura dos
Clássicos...Mais poesia e menos games e televisão...Poesia,
sempre...
Emmanuelle
Delabosse – Tem projetos neste sentido?
GD - Sim. Seria importante
como incentivo à busca de uma identidade com
a cultura popular e a cultura brasileira/universal.
Já estive em algumas escolas e universidades de Brasília
e de outros estados a proferir palestras e debates sobre a
literatura de cordel e outros temas literários.
O que fiz foi mais uma iniciativa pessoal. O sistema das escolas
brasileiras é muito elitista e é mais voltado
para a cultura oficial,
televisiva, a indústria cultural e a cultura do imediatismo
e do
consumismo. É preciso de uma grande revolução
no meio educacional e a adoção de novos métodos
de ensino e de novas linguagens, com a democratização
das modernas tecnologias . A inserção do cordel
no universo escolar é imprescindível para fortalecer
as nossas raízes culturais. Seria uma forma de contrapor
ao dragão da maldade do neoliberalismo globalizante
e do imperialismo colonizador imposto pelas potências
econômicas. Basta!...
Mantenho na Internet o projeto Cordel na Internet que pode
ser acessado em:
www.gustavodourado.com.br/cordel.htm